sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Glória — texto da folha de sala


Glória chora. Deram-lhe boleia. A música - com que se entretêm os homens que ali vão também -, que deixáramos de ouvir antes de ela entrar na carrinha, e que volta a estar presente nesse momento, distrai-os desse pormenor. Só Ivan repara: Ivan, esse rapaz forasteiro cujo primeiro contacto com aquela vila do interior surge sob a forma do nome dela escrito numa parede. Quem o escreveu? E por que chora Glória?
Não o sabemos realmente. É um espaço que pertence às personagens, e que não chegamos nunca a invadir, esse que nos daria resposta a estas questões. O filme, que estabelece desde logo o seu interesse pela reacção, pela consequência, e não propriamente por aquilo que as despoleta, adopta sobre aquilo que se propõe contar uma postura que nos lembra a cada momento que a vida acontece, e que dela só temos (só podemos ter?) alguns vislumbres. O tempo no filme torna-se algo suspenso, que escapa à nossa tendência para o precisar: houve um incêndio na casa do pai de Ivan (acontecimento que tem ecos muito acentuados para algumas das personagens, e que a memória dos habitantes da vila, e o pai de Ivan em especial, não deixa ficar no passado), sabemos que foi há dois anos, mas aquilo que realmente se instala no filme é um tempo indeterminado, imbuído de sugestões de mudança que sublinham o carácter transitório de todas as coisas humanas. Esta noção de uma mudança (da qual não temos senão indícios de que acontecerá mais cedo ou mais tarde) parece presidir ao tratamento do espaço, que nela aparece mergulhado, os locais - a estação de comboios que vai fechar, a ponte destruída, a casa que o pai de Ivan ocupa enquanto não conclui a reconstrução daquela que o fogo deixou em ruínas - tornando-se espaços de passagem, a permanência das personagens neles destinada a ser efémera, num filme em que o que ganha relevância não é tanto o destino (para o qual as caminhadas das personagens convergem ou não) mas o percurso que elas percorrem, esta noção estando de alguma forma presente na própria forma como a câmara se posiciona relativamente ao que é filmado, enquadrando-se pontualmente uma significativa porção do chão, sobre o qual a câmara se deixa ficar inclusivamente num momento em que duas personagens dão uma caminhada à chuva. Os encontros entre as personagens acontecem muitas vezes enquanto elas se deslocam para um dado local, esse local raramente se revelando um destino comum: as relações humanas transformam-se elas próprias em espaços de transição, momentos de interlúdio, de interrupção de um percurso que invariavelmente reclamará a sua separação.



Em off surge assim o passado (o incêndio da casa, que o rancor vivido pelo pai de Ivan relativamente ao seu possível perpetrador, Mauro, traz constantemente ao presente), e também o futuro ou os seus indícios (a referida destruição da ponte chega até nós através do som; a estação de comboios vai fechar mas não nos é chegado a dizer dali a quanto tempo), o foco recaindo sobre os sintomas experimentados pelas personagens ante a inevitabilidade dessa mudança (a cena do pai de Ivan com o cão é um pequeno exemplo disto).

Com efeito, é precisamente num momento de transição que o filme enquadra Glória, a personagem com quem Ivan trava amizade, transição entre a infância e os primeiros estádios da vida adulta, e que aqui passa pelo seu despertar para o impacto que tem sobre os homens esta rapariga que ainda se senta com os mais novos a ver desenhos animados. O momento do supermercado, com o homem que fica a observá-la depois de ela sair, é ilustrativo deste poder que ela começa a adquirir e que, no fundo, é uma coisa (ainda) exterior a ela; são-no também as relações que ela estabelece com Mauro, regressado agora da prisão, e Ivan. Certa noite, Glória sai da cama e vê ao longe, pela janela, uma mota (a mota de Mauro?); Ivan chega à vila e vê o nome dela escrito na parede: a vida dos dois é mudada antes mesmo de eles conhecerem as pessoas que vão desencadear essa mudança. Mauro, esse misterioso homem da mota, relativamente a quem Glória sente dificuldade em posicionar-se, funciona para Ivan como uma espécie de rival no que à atenção dela diz respeito, e os movimentos destas relações surgem materializados na cena do carrossel: Glória, já sentada e em andamento, chama Ivan, que não ocupa o lugar a seu lado porque entretanto surge Mauro, que, sem pedir, se senta ao lado dela. Ivan senta-se atrás e grita por Glória, incitando-a a olhar para ele: mas o chamamento da vida adulta, que Mauro por outro lado representa, é algo entretanto impossível de ignorar. E entre ele e Glória - que surge como uma sobrevivente desde o primeiro encontro entre os dois, encarando-o com hostilidade depois de ter sido atacada por uns rapazes lá da aldeia e assumindo para com ele uma postura que não revela traços de um carácter indefeso, mas antes de uma natureza algo indomável, exteriorizada pela forma quase animalesca como ela se move ao sair da água, que ela retomará depois junto aos carris, quando encontra Ivan de bicicleta - há já um abismo. Vemo-los andar de barco: quem o puxa é ela. Glória está a tornar-se adulta - e Ivan, que ainda se diverte com brincadeiras debaixo da cama, não a consegue acompanhar, nem tampouco aproximar-se de Mauro. E novamente a ideia de caminho como elemento caracterizador das personagens e produtor de sentido: Mauro e Glória andam de mota, à noite; Ivan corre atrás deles, pela estrada; acaba a bater numa árvore, gritando "larga-me!". Mas já não consegue livrar-se de Glória.


"O Ivan não sai do quarto há dois dias", ouvimos a dada altura, enquanto a imagem no-lo mostra atrás de uma janela, ligeiramente desfocado, a olhar lá para fora. Não se pode dizer que aquilo que vemos seja uma reacção dele ao que é dito, mas o facto de essa informação nos levar para esta imagem estabelece forçosamente um diálogo entre elas, através de uma ideia de montagem que lança para segundo plano não só as causas mas também a própria noção de causalidade, e que atravessa todo o filme. A construção narrativa dá-se pois através das entrelinhas nas quais a história surge diluída, e reforça um certo desejo de invisibilidade do narrador: ou, antes, um desejo de apagamento da consciência de que se está a contar algo que foi necessariamente construído. O trabalho de som reforça o tom algo onírico que a construção narrativa e temporal do filme lhe conferem, havendo em tudo (na mise-en-scène extremamente cuidada, que faz as personagens movimentarem-se dentro e fora de campo de um modo que nos reforça a convicção de que estas vidas se poderiam desenrolar independentemente dela, da sua presença) um cuidado sobre o sentido que o torna misterioso, mas não imperscrutável. Intriga-nos o que fica por dizer; e o que presenciamos assombra-nos, recorda-nos a cada instante da impossibilidade de nos inteirarmos completamente das circunstâncias nas quais se desenrola a existência dos que nos rodeiam. De outro modo, como poderíamos encarar o plano que abre o filme, com a idosa a vir à varanda e a dizer adeus, relativamente ao resto do filme? Despede-se ela de Ivan antes de ele partir com a mãe? Será ela Glória, e a viagem de carro que se segue uma forma de sermos lançados para o passado, para um espaço que é essencialmente o da memória dela? Somos deixados sem respostas, mais uma vez: mas as perguntas têm muito mais eco precisamente por serem sugestões, e as personagens muito mais vida devido a esse espaço que lhes é reservado a elas e a nós. Filme de vestígios, inquieta particularmente enquanto desafio ao modo como lidamos com a impossibilidade de certezas, de explicações - e porque nos abandona às nossas próprias dúvidas. Como lidar com o indizível? Essa talvez a pergunta que "Glória" tem a coragem de colocar e, também, de deixar sem resposta.

Rúben Gonçalves


domingo, 2 de dezembro de 2012

Sessão n.º 5
Ao encontro de... Glória (1972), de Manuela Viegas


É com grande felicidade e orgulho que anunciamos o filme que concluirá, já na próxima sexta-feira (dia 7 de dezembro), a primeira parte do ciclo "Ao Encontro De..." - Glória, primeira obra de Manuela Viegas, que o estreou em 1999 no Festival de Berlim. Uma sessão que contará com a presença da realizadora e com a projeção de uma cópia 35 mm. Contamos convosco?

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segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Lágrimas e Suspiros — texto da folha de sala


Paira por vezes sobre Bergman a ideia (redutora, a meu ver, uma vez que ficam fora dela as próprias concepções que o realizador tinha acerca da imagem em movimento, expressas, por exemplo, na afirmação segundo a qual "a palavra escrita é lida e assimilada por um acto de vontade consciente por intermédio do intelecto, afectando pouco a pouco a imaginação e as emoções. O processo é diferente num filme. Quando estamos perante um filme, predispomo-nos conscientemente para a ilusão. Pondo de lado a vontade e o intelecto, conferimos-lhe um lugar na nossa imaginação. A sequência de imagens alcança directamente os nossos sentimentos") de que ele, um realizador vindo do teatro, assinava filmes de natureza essencialmente teatral, jamais se afastando dessa linguagem que muito compreensivelmente ele adquirira com a sua experiência no palco, esta banalidade um pouco irreflectida ignorando o complexo trabalho de mise-en-scène que caracteriza cada uma das suas obras cinematográficas e que em Lágrimas e Suspiros surge com contornos de uma inegável maturidade.

De facto, é inegável a herança do teatro nos filmes do realizador, mas é precisamente no modo como essa herança é gerida que asssenta a modernidade (não só, mas uma vez que é deste filme que falamos hoje) de "Lágrimas e Suspiros". Se no teatro dramático a intriga progride e chega até nós grandemente através do diálogo, e se admitirmos o recurso ao diálogo (frequentemente ao monólogo) como um dos traços que mais evidenciam essa ligação à linguagem teatral, convém lembrar as palavras de Bordwell a respeito daquilo que ele designou como "realismo psicológico" - um cinema em que o diálogo surge como uma "dissecação dos sentimentos através da qual as personagens se revelam aos outros e a nós" e que faz com que o avançar da intriga seja interrompido por momentos em que as elas evocam "histórias, acontecimentos autobiográficos (especialmente da infância), fantasias e sonhos" de forma a "exprimir e a explicar os seus estados de espírito" - para compreender de que forma é trabalhado o diálogo no filme, para isso sendo imprescindível ter em atenção a relação que Bergman cria entre a palavra dita e o espaço em que a acção se desenrola, parecendo existir a intenção de estabelecer um contraste entre o espaço - a mansão em que a acção decorre, com toda a sua austeridade e atmosfera de aparente sobriedade, sempre mergulhada num silêncio em que a única coisa que parece ganhar materialização é o passar do tempo, através do relógio, como constatamos no começo do filme - e os diálogos que as personagens mantêm entre si, e que chocam com esse equilíbrio da arquitectura do espaço em que se inserem por nos revelarem gradualmente todos os conflitos interiorizados de cada uma delas, e que as leva a explodirem em autênticos gestos de violência (mais psicológica do que propriamente física) a que o décor opõe uma sensação de tranquilidade que só o é aparentemente.

O diálogo revela-se assim indissociável do tratamento do espaço, e, mais particularmente, do corpo. Essa repressão de sentimentos tão comum em Bergman ganha na linguagem corporal das personagens uma enorme expressividade, produzindo alguns dos momentos mais pungentes e dilacerantes em todo o filme, como é o caso do momento de aparente reconciliação entre Maria e Karin, na recta final do filme.

"Lágrimas" é um filme a que inevitavelmente regresso de quando em vez, exactamente nesses momentos em que a minha memória dele se me começa a tornar difusa e sinto, subitamente, uma necessidade de o rever para de novo tornar vivos esses pormenores de que me vou aos poucos esquecendo, mas o momento, no início, em que as irmãs de Agnes, a protagonista, e Anna, a criada, surgem vestidas de branco num décor em que as paredes, o chão e cortinas estão mergulhadas em vermelho, é uma imagem da qual nunca me consegui verdadeiramente livrar (nunca conseguirei, ouso), e que, à luz dos significados de que se revestirá gradualmente o branco dos vestidos e o vermelho das paredes, ganha força precisamente pela sua capacidade de nos sugerir, ainda que de forma misteriosa (e mais cativante por isso) a dimensão dos conflitos interiores das personagens, que encontram no vermelho do décor (o vermelho, no qual se dissipam os grandes planos dos rostos delas que alternam o foco narrativo entre as protagonistas) um prolongamento de si mesmas, do qual se encontram permanentemente afastadas pelos vestidos – brancos, cinzentos, pretos, à medida que o filme avança – que funcionam igualmente como manifestação exterior da repressão que, com consequências particulares a cada uma, se constata para todas, no final, igualmente inescapável.

Os corpos (em conflitos entre eles, e com o próprio espaço que os rodeia) merecem de Bergman, como tal, uma abordagem que confere ao filme uma atmosfera de claustrofobia que enquadra as personagens quase sempre num ponto de uma quase asfixia – excepto nas situações em que o plano as abstrai do espaço em redor, como na já referida cena em que se esboça uma possível reconciliação entre Karin e Maria, após a morte de Agnes –, ideia que a banda sonora, preenchida pelo silêncio, por murmúrios e palavras que hesitam em pronunciar-se, e a profundidade de campo (afinal, o cinema encontrava a sua qualidade distintiva, para Bergman, na “possibilidade de se aproximar do rosto humano”, que era também a sua “originalidade primeira”) sucessivamente exploram, os planos do rosto de Agnes – completamente impotente ante um sofrimento que só se torna suportável graças à proximidade de Anna (à consciência da proximidade dela) e à memória de um passado de felicidade no qual coexistem a recordação da mãe, do seu deambular pelo parque sob o olhar de Agnes, e o passeio que darão as irmãs depois em adultas no flashback com que o filme encerra – sendo das imagens mais angustiantes que o cinema me levou a contemplar. Isso e um outro momento, no início, em que a um plano que nos mostra Agnes a dormir e Maria, numa sala contígua, entretanto também adormecida, se sucede um grande plano do rosto de Agnes a acordar, o rosto perturbado pela doença: contida neste corte está a ideia de que Agnes está sozinha no seu sofrimento. E é com esta constatação, profundamente desoladora, de uma solidão incontornável que o filme se inicia. Que cinema – que vida – depois disto?
Rúben Gonçalves

domingo, 18 de novembro de 2012

Sessão n.º 4
Ao encontro de... Lágrimas e Suspiros (1972), de Ingmar Bergman


Depois de uma semana de intervalo regressamos com as nossas sessões semanais e desta vez iremos ao encontro de... Lágrimas e Suspiros, filme de 1972 assinado por Ingmar Bergman.

Anunciaremos em breve a pessoa que irá apresentar esta sessão. Contamos convosco - é já na próxima sexta-feira, dia 23 de novembro, às 14h00 na Sala de Visionamento da ESTC.

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Diários da Bósnia — texto da folha de sala

Srebrenica, 11 de julho de 1995. As forças de manutenção da paz da ONU mantinham-se impassíveis. Os soldados do exército sérvio da Bósnia, então comandados pelo comandante Ratko Mladić (a ser, neste momento, julgado no Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia por 11 crimes de guerra e contra a humanidade), reuniram mais de 8000 homens e rapazes bósnios muçulmanos num estádio de futebol e mataram-nos. Aconteceu há 17 anos. 

Como é que conseguimos lidar hoje com o fardo desta memória? Em que altura é que hoje nos lembramos que o mal existe e que habita a nossa alma perturbada? Ou simplificando: quando confrontados com o real como é que conseguimos viver? 

Quando Joaquim Sapinho viajou para a Bósnia em junho de 1996 e, depois, em janeiro de 1998, esta questão esteve sempre premente. Entre as viagens filmou, primeiro, o desvanecimento de uma ideia sobre um país face “às ruínas e à destruição” e, da segunda vez, ultrapassado o pudor inicial que o impedia antes de apontar a câmara à frente daqueles que choravam e desejavam gritar, filmou “o silêncio e o luto” (Expresso, 15 de julho de 2006). 

Afinal, o que os habitantes e realizador, sobreviventes da Guerra da Bósnia, colocavam em cima da mesa eram cartas muito difíceis de encarar: “as dores de nascimento de uma nação” (Expresso), o confronto com a intolerância e a dolorosa possibilidade em continuar a viver. 

É neste sentido, talvez, que Diários da Bósnia pode ser visto como complemento direto de Je vous salue Sarajevo: enquanto Godard glorifica a “exceção” da “arte de viver” daqueles que colidem com um tempo de guerra na Bósnia, a concentração de Sapinho está na mesma arte da sobrevivência – desta vez, num tempo silencioso de pós-guerra. É por isto que Diários acaba por ser um filme que é inevitavelmente contaminado pela força da religião – recordada como impulsionadora (em parte) do conflito armado ocorrido entre abril de 1992 e dezembro de 1995 e, depois, filmada como “manifestação visível do luto”. É curioso, aliás, perceber como Deste Lado da Ressurreição prossegue o caminho de ver a espiritualidade como o “ajustar de contas” com o absurdo da morte. 

No documentário, esse absurdo ganha expressão, por exemplo, nas cenas do elétrico em direção ao subúrbio, que parece olhar para vivos-mortos, ou nas do Museu de História Natural, assustadoras como os travellings que abrem Noite e Nevoeiro de Alain Resnais. (Será possível acreditar que o filme foi lançado 50 anos antes do Diários? A História era outra e, no entanto, a mesma...) 

A referência mantém-se quando pensamos também em Hiroshima mon Amour (59), do mesmo autor. João Lopes recordou-nos então que “a intensidade do lugar e das suas memórias expunha-nos à violência irrecusável de todas as histórias, a colectiva e as individuais; por outro lado, a consciência de tal violência tornava qualquer discurso hesitante, pudico, consciente das suas drásticas limitações. Mas era importante não desviar o olhar” (Diário de Notícias, 14 de julho de 2006). Diários da Bósnia é, portanto, um dos maiores e potentes exemplos recentes dessa coragem em querer continuar a olhar – por querer compreender. 

A “exceção” de que nos fala Godard (em off, na primeira pessoa e em tom de confissão, tal como Sapinho) está também presente na humildade desta vontade. Lembro-me de uma aula que deu no meu segundo ano. Dizia ele: “é como se houvesse duas funções na arte: uma que serve para que o tempo passe e outra que nos mostra coisas que nos fazem parar.” Quando Sapinho filma a Bósnia tal como a viu (e não exatamente como “é” – quem consegue apontar isto, afinal?) e se propõe a testemunhar a transformação de uma postura (a que se mantém sempre em off e que é protagonizada pelo realizador), está a fazer-nos parar e a relembrar, como Godard a partir da montagem, que a imagem nunca é uma transparência do real. É, por vezes, aquilo que há de invisível e que emana da força do olhar desse real. 

E esse olhar é marcado no filme por uma pulsão eminentemente impressionista – as caminhadas, o chão que percorremos, a cena em que Sapinho filma o cavalo e se perde, parecem fazer raccord com os travellings de Stalker (1979), de Andrei Tarkovsky, que confundiam as memórias com o sonho e o desejo. 

Ao mesmo tempo, Diários parece estar absolutamente indissociável da potência do elemento da neve – é ela que, afinal, vai ditando uma certa ordem pictural nos enquadramentos de Sapinho (basta-nos recordar todos os planos que coabitam com a presença compulsiva da rapariga do lenço vermelho – mas quem é ela? e por que nos fica tão cravada na memória?) 

É sobre a neve que ela vai caminhando; a mesma neve que, mais tarde, faz com que “tememos o esquecimento”. Do horror, do mal, mas também dos cânticos, do reencontro das famílias, da arte de viver, do lenço vermelho na cabeça da rapariga. Mas enquanto exceções como estas viverem continuaremos a aprender a sobreviver.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Cancelada a sessão de dia 16

Esta sexta-feira, dia 16, não haverá filme enquadrado no ciclo "Ao Encontro De...": em vez disso, ocorrerá a Masterclass do Richard Peña, Programador da Film Society do Lincoln Center e director do New York Film Festival, para a qual vos convidamos. Voltaremos às sessões no próximo dia 23, com um filme que anunciaremos este domingo, como é já habitual. Estejam atentos.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Sessão n.º 3
Ao encontro de... Diários da Bósnia (2005), de Joaquim Sapinho


É a terceira sessão do nosso ciclo de filmes mas a primeira que abre com um filme português. E desta vez iremos ao encontro de... Diários da Bósnia, documentário de Joaquim Sapinho estreado comercialmente em 2005. É já na próxima sexta-feira, 9 de novembro, às 14h00 na Sala de Visionamento da ESTC. A entrada é livre e gratuita e a sessão pública. Para além de termos a presença do professor e realizador o que não faltam são razões para ver Diários da Bósnia: veremos uma cópia 35 mm e o filme será precedido pela curta-(curtíssima)-metragem Je vous salue Sarajevo, de Jean-Luc Godard (1993). Um double feature imperdível que nos recordará o peso e responsabilidade da memória.

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Esplendor na Relva - uma revisita

Há qualquer coisa de profundamente perturbante quando hoje regressamos a Esplendor na Relva, 15.ª longa-metragem de Elia Kazan, que nos liga não necessariamente à época em que estreou (1961), ou à que se propõe a retratar (finais dos anos 20), mas a um tempo de juventude que permanece imune à permanente passagem do tempo. Vemo-lo como um diamante: as imagens permanecem rígidas e intocáveis mas têm a capacidade luminosa de transfigurar o mundo, o nosso mundo, a cada vez que contactamos com elas — eis, em síntese, talvez o maior dos poderes do cinema. Nesse sentido, a força de Splendor in the Grass (título original) parece dever à sua ambição de se debruçar sobre os afetos, filmando-os na sua mais fresca potência. E os afetos são algo de verdadeiramente intocável e, talvez sobretudo, urgente num tempo (o de hoje) de insensibilidade e perda de valores. Evidência maléfica: se a repressão sociocultural (estamos nos conservadores Kansas) é aqui o causador da tortura que fará com que as personagens se vejam obrigados a separar e se deixem levar em “direções monstruosas e disfuncionais” (palavras do professor e crítico de cinema australiano Adrian Martin), o amor tem sido, em contrapartida, cada vez mais alvo das mais banais representações, de tal forma que estamos a perder o seu significação fundamental. Assim, rever a separação de Wilma Loomis (Natalie Wood) e de Bud Stamper (Warren Beatty) é também relembrar a fragilidade sempre atual das relações humanas, tão perto do abismo quando felizes e quando tristes. 


A nossa cena (no DVD editado pela Warner Bros. e distribuído em Portugal pela ZON Lusomundo começa aos 55 minutos certos) coloca-nos nesse abismo, quando muito porque existe como contraponto (antes uma triste rima) de uma outra. Esse momento a que nos referimos é a conclusão da reta inicial do filme: um travelling no corredor da escola e em que vemos Wilma e Bud de mãos dadas a caminhar em direção à sala de aula. Se a felicidade estava inteiramente presente neste plano (a proximidade das personagens quando vê um obstáculo — um rapaz que cumprimenta Bud — dá-nos a ver os sentimentos interiores de Wilma, que sobrevive uns segundos sem Bud: olha as pessoas com um sorriso aberto e cintilante), nesta a que nos propomos a rever a luz parece ter permanecido toda ela no passado. Isto porque o travelling que dá início a este momento começa (figuras 1, 2 e 3, em cima) é vista em fusão a um momento precedente, em que Bud trai Wilma com Juanita (interpretada por Jan Norris), por não ter conseguido mais aguentar o combate interior entre o amor (sentido por Wilma) e a vontade de consumação do desejo sexual. Essa fusão confunde o som da catarata (com o qual o filme abre, servindo de fundo para um beijo apaixonado entre Bud e Wilma) com as duas imagens não apenas nos remetendo para o motivo da traição / separação (a repressão sexual) mas apresentando-nos uma mudança de energias de uma cena para a outra, ainda que, curiosamente, a violência resida nas duas. Concretizando esta ideia: se a explosão de cor vivas, luz e união entre Bud e Juanita, encharcados pela água da catarata, nos apresenta a violência da infidelidade e do sexo, a centralização em Wilma, que vagarosamente caminha no corredor, faz-nos assistir à evidente crueldade da solidão. 

É, afinal, sob o signo da ausência que este travelling se opera: como se o enquadramento estivesse, de algum modo, “incompleto”, por lhe faltar a presença de Bud. Wilma anda, como João Bénard da Costa recorda, com “vestido grenat muito escuro, gola de rendas”, trazendo, “debaixo do vestido, o primeiro golpe na sua própria carne” (O Independente, 18 de novembro de 1988). Vestido que, em bom rigor, com a sua austeridade e inflexibilidade (não há qualquer exalação de desejo sexual, mas antes de recate, evidenciado também no modo como leva ao peito os três livros), em tudo se opõe à leveza e luz do vestido amarelo que usa na primeira cena supracitada. Curiosamente, e para alimentar a impiedade do passado, Kazan decide vestir Juanita nesse dia com um casaco amarelo e uma saia verde (figura 6). É espantoso ver toda a coreografia (figuras 3, 4 e 5) que transforma aquela realidade filmada: Deanie (como os colegas tratam Wilma) é cumprimentada primeiro por rapazes, depois ouvimos, em off, alguém a comentar “foi o modo mais certo de o perder…” (de tal modo que a protagonista se sente obrigada a voltar-se para averiguar o motivo da conversa), depois a gritar “ele é um animal!”. Tudo isto converge a uma ideia simples mas devastadora: a cena vive em natural consequência da traição de Bud, como se todos já o soubessem (os rapazes põem a vista sobre Wilma ao entendê-la descomprometida e os restantes colegas parecem comentar a conduta de Bud). E, se na primeira cena Wilma sorria em solidão por sabê-la momentânea, aqui Natalie Wood, quando para no meio do corredor por uns breves segundos, olha em redor como que em absoluto desnorte. 

O movimento da câmara estacionará à porta da sala de aula. Aí, o enquadramento dá-nos a ver um confronto exteriormente subtil mas, ao mesmo tempo, e talvez devido a essa tenuidade na ação, intenso: Wilma olha para Juanita, que lima as unhas pintadas de vermelho, quase sem saber como a ultrapassar, e, depois, num ato de coragem, força um “olá” às amigas, que reagem bruscamente e sem observar a passagem de Wilma entre as três (figuras 6, 7 e 8). Aproveitamos esta operação para falarmos de como, para Kazan, o Actor’s Director, o gestus do ator adquire uma importância primordial. A atitude de Natalie Wood, com toda a sua angústia, é necessária para nos remeter a um off dramático — não basta, por isso, que a montagem seja apenas o mecanismo condutor da narrativa. A representação não está apenas nos diálogos mas, provavelmente antes, em cada gesto, olhar e suspiro. A forma forçada como o “hi” é dito às amigas, sem as encarar e sem que estas a encarassem a ela, é suficientemente demonstrativo da importância dada por Kazan ao pormenor e às possibilidades do corpo — porque em Splendor in the Grass o corpo não é o reservatório da luta entre desejo e amor, mas uma máquina que, devido à sua fascinante individualidade, nos pode oferecer múltiplas possibilidades. 

O plano-sequência que o acompanha é, também curiosamente, um travelling (figuras 9, 10, 11 e 12) que, com a sua invulgar duração, recusa a montagem como mero dispositivo de distração do olhar. Não. O seu começo fixo dá-nos uma vista alargada da sala antes do início da aula: os jovens concentram-se em grupos, os rapazes em círculo e no interior da sala e as raparigas quase coladas à janela, que deixa trespassar um sol imenso e antever um exterior primaveril — estação de descoberta e amor, materializada na simples mas destacada presença de um jarro com flores brancas e cor-de-rosa (na secretária da professora). A entrada de Wilma no enquadramento será o iniciador de uma tensão que se desenvolverá ao longo da restante cena na sala de aula: a protagonista caminha hesitante, como que a tentar fazer que o tempo passasse e a aula começasse mais cedo (muito ao contrário do que desejava antes quando estava com Bud), e é olhada pelos colegas curiosos. A segunda entrada é a de Juanita, cuja atitude surge como que patética: inclina-se para cheirar as flores e sorri, com olhar sonhador, para a professora. E é com o toque da campainha, sinalizador do começo da aula, que o travelling surge, aproximando Juanita de Wilma, que, sentada atrás de si, perde o destaque (o poder está agora em Juanita, de tal forma concentrado que parece controlar o enquadramento na direção do seu sorriso tolo e não à da protagonista).

E dá assim início a aula (figura 13): perante uma vista semi-contrapicada da professora, disposta muito simplesmente à frente do quadro que diz qual é o objeto de estudo da aula (William Wordsworth, 1770-1850, e não, como antes tínhamos visto, sobre Os Cavaleiros da Távola Redonda) e atrás do jarro de flores, como se fundisse entre os dois. A singeleza justifica-se com a força da parte poema que é declamado (Ode of Intimation to Immortality) e cujas palavras têm um efeito de comentário sobre o estado emocional de Wilma, como uma banda musical não diegética. Não é certamente por acaso que o enquadramento que se segue é um dos contracampos possíveis (figura 14), o de Wilma, cujo grande plano a recoloca no domínio do abstrato (à sua volta os elementos estão desfocados) e demonstra-nos a sua alienação. A outra possibilidade de contracampo (figura 15) acaba por reforçar a absoluta barbaridade do momento: Wilma, que na verdade não está “lá” (os olhos estão poisados na sua secretária, a mão sobre a testa fá-la esconder-se do mundo como uma concha), compartilha o seu estado devastado não em solidão (como se sente) mas com todos aqueles com quem não quer estar (sobretudo uma pessoa: Juanita, que à frente dela, com sorriso brilhante, penteia o cabelo à frente de um espelho em off, num momento de narcísica solidão). É interessante como a luz reforça o destaque em Juanita, toda ela, com a sua pele, casaco e cabelos claros, iluminada por aquilo que julgamos ser o sol, ao passo que Wilma se esconde dele como antes nunca a vimos fazer. 

O terceiro movimento de câmara operar-se-á com um sentido de adequação dramática (figura 16), uma panorâmica subjetiva da professora que vislumbra, com uma vista picada que obriga a colocar aquelas personagens na sua realidade física, uma juventude desinteressada e silenciosa — eis, afinal, o papel da educação a falhar, porquanto não existe qualquer resposta para a questão ingénua da professora (“o que acham que o poeta quer transmitir com estes versos?”).

O que Natalie Wood responderá a seguir tornou-se, com o tempo, emblema de uma certa reação das novas gerações, de tal modo que proporcionou a existência das “ressonâncias míticas, associado aos idos de 60 e aos maios de tal década” (João Bénard da Costa), com as quais o filme é ainda hoje relembrado. É um momento (figuras 19 a 25) de beleza e tristeza penetrantes: a atriz quase se desmancha em lágrimas quando é obrigada a abrir o livro na página 380, a ler o poema e levantada (a violência opera-se através de uma banda sonora que privilegia apenas o som agudo e isolado das ordens da professora). É por isso que a leitura do poema, ditos de forma tão vagarosa e frágil (Natalie Wood parece combater-se consigo mesma para não soltar um monstro), nos parece, cada vez mais, fortalecer a ausência de Bud (de novo nos vem à cabeça a ideia de mise-en-scène “incompleta”), através das dinâmicas entre passado / futuro presentes, aliás, no texto de Wordsworth: Though nothing can bring back the hour / Of splendour in the grass, / of glory in the flower, / We will grieve not, rather find / Strength in what remains behind. Kazan parece aproveitar a leitura para, de modo transparente, aproximar-se com a montagem do rosto expressivo de Natalie Wood e rodeá-la cada vez menos de pessoas. Curioso é o intermédio dessa aproximação (figura 21): o enquadramento está centrado em Wilma, mas ao seu lado estão quatro rapazes a olhá-la curiosos. Apesar do seu destaque, o domínio parece cruelmente transferir-se para o poder do homem sobre a mulher (Bud sobre Wilma) e poder daqueles que se dispõem a ser livres e impuros (vide o contracampo para Juanita que, com sorriso malicioso, olha para Wilma enquanto lê o poema). Natalie Wood parece transfigurar-se no último grande plano sem elementos em seu redor a distrair (a finalização da aproximação de Kazan para Wilma), cuja ambiguidade do tom da voz (tão forte quanto frágil) e do olhar (tão determinado quanto pronto para chorar em desespero) conferem ao seu discurso uma força invulgarmente desarmante (mesmo quando sabemos que aquela interpretação em nada se adequa a uma resposta acertada à questão da professora): “quando somos novos, acho que encaramos as coisas de um modo muito idealista. E penso que Wordsworth quer dizer que quando crescemos temos que esquecer os ideais da juventude, e encontrar forças…” Forças para quê? Eis uma questão que fica felizmente sem resposta: nem Natalie Wood aguenta a conclusão de uma oração sobre o (seu) futuro. 

E é então que a tensão e poesia da cena atingem o seu cume com o travelling final: Wilma caminha em direção à professora com a mão na testa (tapando os olhos lacrimejantes) e a câmara caminha em sua direção até filmar (figura 24) o seu desespero último: os olhos tremem de lágrimas (iluminadas por uma luz fortíssima, mais forte que a do sol exterior, que cai sobre si) e a voz cai a cada esforço. Sem esperar a permissão, Wilma corre do enquadramento perguntando se pode sair, abandonando-nos com uma turma imobilizada (figura 25, em baixo). Estes brevíssimos momentos em que vemos a turma dão-nos a ver um efeito perverso de espelho: aqueles alunos são os espectadores, nós, petrificados perante a movimentação de Natalie Wood. 

A brutalidade da cena materializa-se no enquadramento seguinte (figuras 26, 27 e 28): vemos com grande profundidade de campo o corredor vazio (eis o abismo de que nos referíamos há pouco) onde outrora Wilma caminhou com Bud em nossa direção e é-nos atirado à cara a porta da sala de aula que bruscamente abre. Após este movimento vigoroso permanecemo-nos fragilizados com o embate e não seguimos em travelling a corrida de Natalie Wood. Não — Wilma torna-se o travelling em si mesmo: e aí reside, afinal, a totalidade da sua força, tanto que permanecemos petrificados quando vemos a professora que corre para a acudir (figura 30). Curiosamente, a cena não termina com a corrida. Kazan prefere terminar o momento com um enquadramento (figura 31) que funciona como um comentário patético, quase a servir de alívio a toda aquela intensidade: Juanita chora numa teatralidade que não nos convence, tanto que ao seu lado está uma rapariga que a olha com desdém, como que a culpar pelo sucedido: afinal, assim a olhamos também.

É de facto fascinante como a mise-en-scène de Esplendor na Relva não se reduz, como tantos a outros, a enquadrar a cena para que percebamos o que, em termos dramáticos, está a acontecer diante de nós. Kazan recusa a facilidade para dar um valor à planificação e ao preenchimento do enquadramento que atinge a interioridade das personagens e o discurso essencial do filme (este passando necessariamente pela ideia de que o amor é uma matéria necessária, sim, mas também absolutamente impiedosa).

Texto realizado no âmbito da unidade curricular Realização e Mise-en-Scène (2012), lecionada por Vítor Gonçalves, da Escola Superior de Teatro e Cinema.

Prof. Vítor Gonçalves sobre Esplendor na Relva


Hoje publicamos no blogue o vídeo de apresentação do Prof. Vítor Gonçalves e discussão do filme Esplendor na Relva (1961), de Elia Kazan. Aproveitamos para agradecer a presença de todos os espectadores, aos nossos colegas Madalena Fragoso (que filmou a sessão) e Marcelo Pereira (responsável pelos cartazes) e, em especial, ao professor Vítor Gonçalves pela disponibilidade e entusiasmo.

domingo, 4 de novembro de 2012

Impressões sobre Esplendor na Relva (1)

O Nuno J. F. Fernandes enviou-nos um comentário sobre o filme, que passamos a citar:

“Though nothing can bring back the hour, of splendor in the grass, glory in the flower, we will grief not, rather find strength in what remains behind.” Um inteiro mundo de esplendor e graça se desmorona nestas palavras que a protagonista cita. A rosa branca quebra-se. Somos todos “Dean” ou “Bud” ou ainda aqueles rapazes e aquelas raparigas que se deixam estar no fundo da sala, aceitando a roupa que lhes dão para vestir. Wilma Dean tem um namorado que ama, é aluna que quer ser, aluna de si mesma e filha dos seus pais. Contudo deseja mais que isso. A força do seu desejo em conseguir algo mais entra em ruptura consigo mesma quando os pais, orgulhosos e cheios de ideias feitas lhe surgem como o dedo indicador de Deus sobre o caminho que deve trilhar, ou a professora arbitrária que impinge que mulher ser. Mas quando tudo o que procura atingir, lhe é recusado por via exterior ou até mesmo interior (conflito com os valores da socialização primária: mãe, pai, familiares), dá-se lugar uma interrupção, um período de choque, de onde se quer afirmar o percurso que busca incessantemente. O mundo está divido em três partes: entre aqueles que já ultrapassaram o conflito, aqueles que nunca transpuseram a barreira e aqueles que a batalham agora.  

Tal como o Nuno, podem utilizar o nosso e-mail para nos enviarem quaisquer comentários que queiram tecer sobre este ou sobre o filme da sessão passada.

sábado, 3 de novembro de 2012

Esplendor na Relva - Texto da folha de sala


Esplendor na Relva vai à poesia de Wordsworth buscar o seu título e, no que diz respeito ao desenvolvimento das personagens, o seu tema. O poema surge em dois momentos muito específicos do filme, sendo que, da primeira vez, o seu significado chega mesmo a ser motivo de debate: Deanie, a protagonista feminina, fala dos ideais de juventude, e acredita que os versos We will grieve not, rather find/Strength in what remains behind traduzem a chave para a postura a adoptar à medida que eles se vão perdendo com o passar dos anos. Com efeito, o filme nunca chega a citar os versos que surgem imediatamente a seguir na Ode to Intimations of Immortality (In the primal sympathy/ Which having been must ever be;/ In the soothing thoughts that spring/ Out of human suffering;/ In the faith that looks through death,/ In years that bring the philosophic mind), de onde são retirados aqueles que ouvimos, primeiro na aula e, depois, no carro, mas não será difícil descobrir ecos destas palavras no desenrolar dos acontecimentos ao longo da história, particularmente na parte final do filme, no momento do reencontro entre Deanie e Bud. Este reencontro, que faz com que as personagens constatem o abismo que as separa, agora, do momento em que estiveram apaixonados e com promessas de felicidade, bem como a completa impossibilidade de resgatarem essa época das suas vidas, de a ela regressarem (Though nothing can bring back the hour/ Of splendour in the grass, of glory in the flower), surge, segundo o próprio Kazan, como "a aceitação das consequências do desastre". Mas que desastre, afinal? O da subjugação dos valores da sociedade às leis de que depende o sucesso dos negócios que a regem, subjugação que gera um colapso desses valores e, derradeiramente, a "destruição das partes mais ternas e humanas" de cada um de nós. Deanie e Bud vêem o futuro da sua relação, assim, inteiramente condicionado por razões económicas e morais: enquanto as circunstâncias económicas em que a história se passa (e que, no caso do pai de Bud, são a matriz do seu comportamento relativamente ao filho) ameaçam lançar Bud para longe da personagem de Natalie Wood, a moralidade através da qual a mãe de Deanie enquadra as relações amorosas, e que espelha a mentalidade da época em que os acontecimentos se desenrolam (fim dos anos 20, início dos anos 30), faz com que a filha não se consiga entregar a Bud como deseja, a relação dos dois sucumbindo, no final, aos conflitos gerados por estes dois eixos segundo os quais a história é delineada, e os dois tornam-se protagonistas de uma tragédia despoletada, em última análise, por questões que lhes são exteriores.
Estes elementos são introduzidos logo no momento em que Deanie e Bud se encontram no carro junto à cascata, funcionando esta cena inicial, relativamente a todo o filme, como funciona a frase com que Tolstoi começa o seu Ana Karenina ("Todas as famílias felizes se parecem; as infelizes são-no à sua maneira") ou aquela que abre Orgulho e Preconceito, de Jane Auten ("It is a truth universally acknowledged, that a single man in possession of a good fortune must be in want of a wife") - tal como estes autores, Kazan consegue estabelecer, logo nos primeiros instantes do filme, o tema (a repressão sexual e o seu poder anulador) e as principais questões com que a história e as personagens irão lidar (o conflito entre o desejo de Bud e de Deanie de concretizarem a sua relação no plano físico e as restrições impostas pela moralidade da época); além disso, é apresentado o elemento da cascata, fortemente associado ao desejo sexual e sua consumação, que será um motivo visual com bastante relevo durante o resto do filme.
Tendo tudo isto em conta, não nos surpreende o tom profundamente elegíaco em que surge mergulhado o filme, que desde logo trabalha o seu sentido de uma forma clara (mas não explícita) e misteriosa, pormenor que faz com que a vida o invada a cada momento: lembremo-nos do momento em que Deanie, recuperada da sua doença, volta a casa, e do seu primeiro pedido quando aí chega; ou do encontro final dela com Bud, em que o que é realmente importante fica por dizer, como na vida, a cena revelando-se interessante precisamente por isso. O instante em que Deanie entra em casa de Bud e se vê ante uma família que poderia ser a sua (uma cena de cuja angústia crescente, simultaneamente inexprimível e a custo reprimida por Deanie, somos no final aliviados por um travelling que a acompanha enquanto ela se afasta para sair de casa), ou o momento final, em que o poema volta a surgir, em off, como resposta à pergunta que a amiga de Deanie lhe coloca, são exemplo daquilo que, a meu ver, eterniza o filme para nós (em nós), a imagem de Deanie quando sai a correr da sala de aula depois de se debater para explicar o significado do poema - o plano em que a vemos atravessar o corredor vazio, de costas para nós, que fecha a cena com uma rima perfeita com o plano que a inicia, que enquadra o mesmo corredor, então cheio de estudantes - tendo-se tornado das recordações mais vívidas que guardo comigo, tão ou mais intensa do que aquelas que foram protagonizadas por mim mesmo: somos feitos de personagens, afinal. E, nas memórias que vamos acumulando, as histórias delas confundem-se com as nossas.
Rúben Gonçalves

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Notas de Elia Kazan sobre Esplendor na Relva

Espreitamos o diário de Elia Kazan e descobrimos várias entradas sobre a produção de Esplendor na Relva, que iremos publicar durante estes próximos dias. Estas notas podem ser consultadas no livro Kazan on Directing.

2 de abril de 1958

Romeo in the Age of Business, Style: A Romantic Tragedy

Deanie is being prevented from giving herself to Bud ostensibly on moral grounds, but really because Mr. and Mrs. Loomis know that 'if you give it away then he won't but it'.
A poem in praise of young love. Take time (and make the script short enough) so that
it can be a poem, so you will have time and the room for poetry, the boy and the girl laughing, eating fruit, juice of peaches running down the faces. In the sunlight. Dramatize the young love so the audience feels and knows that this is the best time of their lives.
They are not aware! They're not aware! The're not aware of what's happening to them or the significance of what's happening to them. Also, Bill Inge holds all his characters at arm's length. They should not be directed subjectively. They are all observed as characters.

domingo, 28 de outubro de 2012

Sessão n.º 2
Ao encontro de... Esplendor na Relva (1961), de Elia Kazan

Cartaz de Marcelo Pereira
É a segunda sessão e desta vez vamos Ao encontro de... Esplendor na Relva, longa-metragem de Elia Kazan estreada em 1961 nos EUA. Quem tiver página de Facebook pode confirmar a sua ida a partir da ligação do evento. O convidado a falar nesta sessão ainda será revelado em breve.

The River, uma reflexão


I'm not crying because you are going. I'm crying because it is going. (...) This being together in the garden. All of us happy and you with us here. I didn't want it to change, but it's changed. I didn't want it to end, but it's gone. It was like something in a dream. Now you've made it real. I didn't want it to be real!

 À saída de dois filmes que vi recentemente, dei por mim a conversar com as pessoas com quem os partilhei sobre essa questão aparentemente tão difícil de resolver relacionada com a natureza do cinema, com as propriedades ou características que nos permitem reconhecer uma determinada obra como um objecto cinematográfico; confesso que de ambas as vezes saí insatisfeito com as intervenções que escutei, e eu próprio não fiquei convencido com as minhas respostas. Longe de querer aproveitar este espaço para dar voz às minhas convicções pessoais a respeito do assunto, penso que é este um bom ponto de partida - "o que é, afinal, o cinema?" - para a breve reflexão sobre o filme de Renoir que vimos esta sexta-feira passada, se tivermos em conta dois pontos: que essa é uma pergunta a que todos os realizadores se propõem responder sempre que concebem um filme, e que "The River" não existiria sem os décors naturais em que a acção se desenrola, condição que desde a sua génese foi encarada por Renoir como indiscutível para a sua concretização e pormenor que não nos parece supérfluo à luz do discurso do filme (sobre o qual discorreremos em seguida) e que nos leva a um dos aspectos mais marcantes aqui, isto é, a presença da paisagem (a presença da Índia) no filme.

 Os primeiros planos - as mãos femininas que desenham a giz, os pescadores em contenda com os remos nos barcos - e respectivo acompanhamento musical mergulham-nos desde logo, juntamente com a voz-off de Harriet (que assim se assume como um mecanismo que será recorrente no filme), nas tradições indianas em que a história encontra as suas raízes, e também nós não demoramos a sentir aquele enlevo descrito por Renoir a propósito do efeito que a sua estadia na Índia teve sobre ele, enlevo cuja verdadeira natureza ainda não discernimos mas que terá algo a ver com os tecidos das cortinas que trazem para dentro das casas uma luz que já não é a mesma que dá às conversas na rua o seu compasso característico, e que nos mostra, em todo o seu esplendor e vivacidade, as cores das fachadas das moradias, da relva e das árvores floridas; com as sombras que projectam essas árvores, segundo os caprichos da movimentação do sol, e também as pessoas cujas existências as reúnem em torno delas, quer seja em brincadeiras (Harriet e os irmãos no jardim, nos momentos iniciais do filme), em dissimuladas confissões de sentimentos no baloiço, ou a entregarem-se aos suaves prazeres de uma sesta vespertina - tal como Renoir, também nós sentimos esse encantamento pela Índia, também nós nos sentimos intrigados pela sua paisagem e pelas margens dos seus rios, junto das quais os anciãos aprendem a sabedoria desse país milenar, e que Harriet descreve, a dada altura, com as seguintes palavras: "Queria escrever cada vez mais. Sempre sobre o rio. Queria contar ao Cap. John como as pessoas dependem do rio espírita e fisicamente. O povo do rio e o povo da aldeia. Como os trabalhadores da juta se refrescam no rio após um duro dia de trabalho e os homens lavam as suas roupas. Sobre os velhos que se aquecem ao sol. Sobre as crianças que nadam e chapinham na água. Sobre os outros que vagueiam e meditam..."

 Ora, tal como Bénard da Costa, ao referir-se à árvore (a "Árvore do Povo", a que se dirigem as mulheres para pedir a bênção de um filho), a lembrou como sinal do permanente e do efémero, lançando luz sobre a justaposição dessas duas realidades, há em "The River" um tratamento da paisagem que, além de conferir ao filme um tom fortemente pictorial (Renoir cresceu, afinal, entre a pintura), sobrepõe precisamente os acontecimentos humanos, com as suas tragédias mais ou menos significativas, e a placitude da natureza: o momento mais ilustrativo disto mesmo sendo a cena do funeral de Bogey, em que, no mesmo plano, nos é dada a ver a procissão atrás do caixão e os animais que, lá ao fundo, se alimentam das ervas. A relação que o filme estabelece com a natureza assenta, pois, nas ideias de ciclo e circularidade: ao ciclo da vida (com especial ênfase no que respeita aos momentos do nascimento e da morte) preside a circularidade segundo a qual tudo o que nasce do rio a ele regressa - é o rio, que conta todas as histórias, de onde todas elas partem e onde virão invariavelmente desembocar, que faz chegar Cap. John às vidas de Harriet, Valerie e Melanie, no barco a vapor: o barco a vapor trá-lo, no início, e levá-lo-á para longe, no final do filme; Bogey, o irmão de Harriet, que surge desde os primeiros minutos associado aos animais, morre devido à mordidela de uma cobra - e, no momento do seu funeral, a cerimónia coexiste com o gado que pasta nos prados, uma ideia que Bresson revisitaria no final do seu "Au Hasard Balthazar" ao deixar o seu protagonista, depois de uma vida sujeita às vontades dos humanos, aos seus maus cuidados e negligências, morrer entre os animais, depois de ser baleado.

 Com efeito, a circularidade é um factor a considerar na tensão entre realidade e sonho que o filme trabalha no seu âmago, e relaciona-se, mais uma vez, com os dois grandes acontecimentos do filme: a paixão que as três raparigas desenvolvem pelo Capitão John e a morte de Bogey. Podemos dizer, ao atentar nas primeiras cenas do filme, que Harriet e as amigas levam as suas existências numa espécie de idade da inocência, cuja tranquiliadade a chegada de Cap. John vem perturbar, ao introduzir a realidade do amor no mundo fantasiado de Harriet, a morte de Bogey funcionando, depois, como a derradeira sobreposição da realidade ao sonho - interrompendo-o literalmente, se tivermos em conta como a descoberta da morte de Bogey se dá: vemos, a começar por Harriet, no jardim, uma sequência em que os elementos da família fazem a sesta nas diversas divisões da casa, excepto Bogey, que vai brincar com o amigo Kanu para a Árvore do Povo, junto da qual avistara uma cobra; voltamos a Harriet, que, ao despertar, dá pela ausência de Bogey e o vai encontrar, já morto, junto à árvore, havendo neste deste despertar um valor simbólico tal que não seria deslocado dizermos que é este o momento em que a trajectória pessoal de Harriet ao longo da história a conduz finalmente ao alcance da maturidade. Antes de falarmos do crescimento, do alcançar da maturidade, questões muito centrais no filme, convém contudo atentar num outro elemento que testemunha a importância da materialidade da paisagem em "The River": o muro. O muro, que separa a casa de Harriet da casa do vizinho Mr. John, relaciona-se com a tensão entre realidade e sonho uma vez que Renoir decide colocar as suas protagonistas atrás dele em dois momentos-chave, que decorrem além-muro - a chegada de Cap. John e a procissão fúnebre da morte de Bogey, respectivamente -, estabelecendo-o, assim, como uma barreira física entre o mundo familiar - o mundo do sonho, enfim, associado a Nan ("the bridge to life"), aos serões passados na companhia da música e às brincadeiras no jardim - e o mundo real, associado ao Cap. John e à morte de Bogey, havendo no pormenor de elas assistirem a estes dois momentos resguardadas pelo muro a manifestação da dimensão circular da construção narrativa do filme ("clay goes back to clay", diz-nos Harriet sobre Kali e os rituais de celebração dessa deusa da criação e da destruição que inspirou aos indianos a crença de que uma coisa não pode ter lugar sem a outra) mas, também, a sugestão do ciclo destinado a repetir-se que é, no fundo, a existência de cada um de nós: o rio traz Cap. John até elas, e é ao rio que Harriet regressa no esforço vão de reencontrar Bogey depois da sua morte, com a sensação de que tanta coisa ficou por lhe contar; mesmo a narrativa que Harriet relata a propósito da cerimónia tradicional do casamento indiano arranca de Valerie a observação de que aquilo não tem fim, estando tudo fadado a repetir-se com o nascimento da rapariga, momento de suspensão da intriga do filme propriamente dita que, contudo, prenuncia o seu final, com o nascimento da irmã de Harriet.

 Assim sendo, há em "The River" a noção de que o crescimento de Harriet e das amigas se dá através do contacto com as realidades do amor e da morte, e de que o nascimento está sempre intimamente relacionado com a morte (não havendo propriamente uma relação causal entre os dois eventos, o facto é que à morte de Bogey sucede o nascimento da irmã). Dissemos antes que o tema do crescimento é algo de extrema relevância na compreensão do filme, e bastaria evocarmos as palavras que, em off, surgem no seu início para dissiparmos quaisquer dúvidas: "it is the story of my first love, and about growing up in the banks of the river". Desde aqui que o filme faz coincidir o crescimento das suas protagonistas com a descoberta do amor, ideia muito Jane Austeniana que ganha força nas palavras da mãe de Harriet no momento em que ela discorre sobre a experiência da maternidade, inserindo-a nesse ciclo interminável de começos e fins ao dizer à filha que ter filhos do homem que se ama "it's a precious, sanctified work", sendo o acontecimento que confere sentido à vida de uma mulher - o acto de amor figurando-se como sagrado, para ela, porque indissociável do acto de criação, de nascimento, de vida que se inicia. Tal como o amor, diz-lhe ela, esta é uma experiência que é dolorosa precisamente porque é suposto fazer pensar e sentir aquelas que a protagonizam. São, no fundo, as growing pains de Harriet, e há diversos momentos do filme que testemunham esse crescimento que está ainda em vias de se dar, momentos de uma tremenda manifestação da humanidade da personagem e que a separam de Valerie e de Cap. John, que muitas vezes a encaram com alguma condescendência: lembremo-nos, por exemplo, da cena em que Harriet anuncia saber tudo sobre Krishna, na tentativa de impressionar Cap. John, mas vendo-se forçada a perguntar-lhe, e a Valerie, como se soletra o nome desse deus; ou a cena em que Harriet se propõe a mostrar a Cap. John o seu livro de poesia - a poesia, que surge enquanto sinal da maturidade de Harriet e meio através do qual ela busca captar a atenção e interesse do Cap. John - explicando-lhe que "é um segredo" do qual estão a par, contudo, Nan, a mãe e outros elementos da família, como ela logo lhe revela.

 Há, porém, uma cena do filme que materializa quase literalmente, através do staging da acção, estas ideias que relacionam o crescimento das protagonistas com o amor, o mundo de casa de Harriet, o jardim em que se trocam todas as confidências, e a realidade lá fora - temos em mente a cena em que Cap. John segue Melanie até à floresta, sendo ele seguido, por sua vez, por Harriet e Valerie, que correm atrás dele com flores nas mãos para lhe oferecer. Ora, para irem atrás dele, quer Harriet, quer Valerie têm ultrapassar o muro da casa (e isto é deixado bem claro pelo plano que nos mostra Valerie saltando-o e correndo, atrás de Harriet, em direcção à floresta), e a voz off de Harriet surge nesse momento para nos dizer que "suddenly we were running away from childhood, rushing toward love", sublinhando o carácter simbólico não só desse gesto particular mas de que se revelará carregada a própria cena, tal como as da chegada de Cap. John e do funeral de Bogey, que referimos anteriormente. O modo como a cena progride não é difícil de resumir: as quatro personagens chegam à floresta e acabam por dispersar-se entre as árvores; Valerie surge junto ao Cap. John e interpela-o, os dois acabando por se beijar sob o olhar de Melanie e Harriet. A esse beijo segue-se o monólogo de Valerie que serviu como introdução a este texto, havendo no travelling que encerra a cena e que nos afasta de Valerie e de Cap. John a sensação, que parte do interior das personagens e que nos vem envolver, de que algo se perdeu irrevogavelmente nesse momento. Poderíamos ousar mesmo dizer que o staging da acção nesta cena ilustra o fascínio de Renoir pela Índia (um ano lá tornara-o diferente, como o próprio confessou: "A Índia deu-me uma certa compreensão da vida, (...) ensinou-me talvez a ser um pouco mais paciente na vida, a compreender talvez que cada um tem as suas razões"), ao termos Cap. John, o forasteiro, a lançar a cena ao ir atrás de Melanie, a bela indiana, cativado pelo seu mistério e pela ambiguidade que caracterizara o momento anterior entre eles, dentro da casa. E este fascínio pela Índia vivido por Renoir, esta ânsia de a revelar um pouco aos que nunca a visitaram (não obstante ele ter admitido que para um francês a Índia é um lugar muito fácil de compreender), justifica talvez a natureza fortemente documental do filme - que se manifesta sobretudo nos momentos dedicados a elucidar-nos sobre a natureza da cerimónia de Diwali, a vida dos pescadores, o modus operandi dos trabalhadores da fábrica de juta que o pai de Harriet possui, as celebrações a propósito de Kali, ou a sequência em que nos é dado a ver uma série de escadarias que vão dar directamente ao rio - e com a qual a voz-off (presente desde os momentos iniciais, e sem a qual o filme nos parece inconcebível) se relaciona intimamente, pormenor que a resgata da mera função de comentário ou de exteriorização dos sentimentos e pensamentos de Harriet, que a poderia tornar irrelevante ou, pelo menos, redundante (algo que, felizmente, nunca acontece), voz-off essa cuja presença se torna ainda mais significativa se tivermos em conta que se tratou de uma decisão de montagem.

O rio, a árvore, o muro. O ciclo, a circularidade - o consentimento: é essa a postura a que o filme no final aspira a fazer o encómio, atitude que surge enraizada nas tradições indianas em que a história vem imbuída e que, também ela presente em Ozu, por exemplo, parece conter a chave para a continuidade desse ciclo que, no filme, reúne a aceitação da morte de Bogey, o ferimento que para sempre isolou Cap. John das pessoas com quem se relaciona, o amor que ele nunca dedicará a Harriet, e Melanie e o mistério das suas origens: a maturidade surge assim, para eles, não como uma ultrapassagem desses conflitos interiores, mas como a aceitação desses dilemas e paradoxos com os quais as vicissitudes das nossas existências nos fazem conviver.

Rúben Gonçalves

Prof. João Maria Mendes sobre O Rio Sagrado

Publicamos hoje a apresentação filmada do Prof. João Maria Mendes do filme O Rio Sagrado (1951), de Jean Renoir, exibido na passada sexta-feira (dia 26 de outubro). Devido a problemas de ordem maior não pudemos proceder à discussão do filme que daria seguimento ao visionamento. Aproveitamos ainda para divulgar, com este vídeo, o nosso canal de Youtube (que convidamos a todos a subscrever). Muito obrigado àqueles que estiveram presentes e, muito em especial, ao Prof. João Maria Mendes. Para a semana há mais.

sábado, 27 de outubro de 2012

O Rio Sagrado – texto da folha de sala



Descobri O Rio Sagrado numa aula de Teoria da Montagem – descobria então aquele que é um milagre de filme; “milagre” no princípio, que nos dá as boas-vindas a um território (a Índia) onde me parece que a vida é celebrada como uma passagem para outro início (outra Índia); “milagre” no fim, que reforça a ideia de eterno retorno com um nascimento. Lembro-me (porque escrevi no caderno de notas) que tive medo de intervir na aula, sob a pena de destruir algo, potencialmente bigger than life, que estava diante de mim. No momento em que escrevo estas palavras continuo com esse medo e, também, ainda assombrado.

João Bénard da Costa, no seu texto sobre O Rio Sagrado, redisse que era “o mais belo filme do mundo” – convicção que acompanhou com um ligeiro espanto: se é o mais belo por que razão não o vemos citado como um dos mais importantes Renoirs? Se não fôssemos descrentes na arbitrariedade da enciclopédia 1001 Filmes para ver antes de Morrer morreríamos descansados por não termos visto O Rio Sagrado (que não consta na lista). Um filme que, afinal, não teme a morte – e é obrigatório, dizemos nós, para se ver vivo!

Quando, em 2012, (re)vemos este filme as suas imagens parecem-nos levar a um referente desconhecido, como se a memória recordasse bem as personagens e o discurso patentes no filme do Renoir. Por fim descobrimos o raccord: afinal foi Terrence Malick quem, no ano passado, nos fez descobrir um novo mundo chamado A Árvore da Vida. Lá encontrámos a figura da mãe, omnipresente, as dores do crescimento, essenciais em ambos os filmes, a angústia sobre o mistério da morte, também ela central, e o modo de conduzir a nossa espiritualidade. As fundações dos grandes temas que Malick trata na sua destemida odisseia tinham já sido tocadas havia então 60 anos.

O Rio Sagrado, que nos sugere também a imagem de uma grande árvore (“a árvore da vida” que, quando surge de vez a vez, domina a força de todo o enquadramento e nos obriga a pensar na questão da fusão de tempos – passado, presente e futuro), segue estas questões com agilidade (e notável serenidade).

Renoir concentra, contudo, a voz interior do filme numa – na protagonista, a Harriet do futuro, que conduz, sempre em off e até ao fim, o fio da narrativa num discurso que percorre, primeiro, um lado eminentemente realista e documental – ligados aos rituais religiosos e ao quotidiano da Índia, ignorando os estereótipos dos “elefantes, lanceiros e tigres”, como o próprio Renoir refere na sua apresentação do filme, e filmando (através da bela fotografia do sobrinho do cineasta) a vida que há no Oriente e que é percepcionada pelos olhos de um “viajante” do Ocidente. Depois, a voz de Harriet toca também a poesia (os versos simples que tão sincera e ingenuamente dedica ao Capitão John por quem está apaixonada) e, também, a fábula (a história dentro da história que nos faz aceder à cerimónia nupcial: mágica e primitiva, já que nos leva à origem da tradição).

O rio tem uma poderosa força simbólica (Bénard da Costa referia a sua feminilidade para descobrir como este era porventura o filme mais “feminino” de Renoir) mas parece-nos que é de igual modo uma imagem altamente sugestiva pelo seu lado unificador. Como a vida, o rio também existe através das suas atribulações ou, dito de outra forma, através das suas ondas – o equilíbrio daquela família inglesa faz-se não pela total estabilidade mas pelo crescimento, necessariamente agitado, de cada personagem. É certo que Renoir se foca no desenvolvimento de Harriet que, ao procurar dar sentido à crescente desordem do seu universo, se depara com a realidade dos acontecimentos (será que em 2012 alguém, com a informação instantânea da Internet, sente a violência destas descobertas?).

Ao mesmo tempo, parece-nos que todas as personagens deste filme vivem constantemente um dilema entre viver num ideal da felicidade e uma realidade incerta que é, porventura, dolorosa – Valerie, a dado momento, desabafa: “it was like something in a dream. Now you've made it real. I didn't want to be real”. Do mesmo modo, numa das cenas mais fascinantes do filme, Harriet confronta-se inevitavelmente com absurdo da realidade logo após a morte do irmão: afinal, o Bogey morreu e estou diante de um prato de comida? Ao mesmo tempo e contrariamente, Mr. John faz uma confissão radical mas absolutamente consciente: “we should celebrate that a child died a child. That one escaped. We lock them in our schools, we teach them our stupid taboos, we catch them in our wars, we massacre the innocents. The world is for children. The real world.”

Assim o rio continua – como a vida. Num círculo sem “end”, mas “endless”. Depois da morte, um nascimento; depois de uma desilusão, as cartas que são esquecidas nas escadas... E tudo isto convive simultaneamente, isto é, em fusão. Foi, talvez, a lição mais preciosa que tirei da aula em que vi pela primeira vez O Rio: o filme, que integra (e não separa) corpo e espírito, Ocidente e Oriente, vida e morte, prova-nos que o cinema, tal como a nossa existência, pode ser, ao mesmo tempo, claro e indeciso. Obscuro e luminoso.

Flávio Gonçalves