Paira
por vezes sobre Bergman a ideia (redutora, a meu ver, uma vez que
ficam fora dela as próprias concepções que o realizador tinha
acerca da imagem em movimento, expressas, por exemplo, na afirmação
segundo a qual "a palavra escrita é lida e assimilada por um
acto de vontade consciente por intermédio do intelecto, afectando
pouco a pouco a imaginação e as emoções. O processo é diferente
num filme. Quando estamos perante um filme, predispomo-nos
conscientemente para a ilusão. Pondo de lado a vontade e o
intelecto, conferimos-lhe um lugar na nossa imaginação. A sequência
de imagens alcança directamente os nossos sentimentos") de que
ele, um realizador vindo do teatro, assinava filmes de natureza
essencialmente teatral,
jamais se afastando dessa linguagem que muito compreensivelmente ele
adquirira com a sua experiência no palco, esta banalidade um pouco
irreflectida ignorando o complexo trabalho de
mise-en-scène
que caracteriza cada uma das suas obras cinematográficas e que em
Lágrimas
e Suspiros
surge com contornos de uma inegável maturidade.
De
facto, é inegável a herança do teatro nos filmes do realizador,
mas é precisamente no modo como essa herança é gerida que asssenta
a modernidade (não só, mas uma vez que é deste filme que falamos
hoje) de "Lágrimas e Suspiros". Se no teatro dramático a
intriga progride e chega até nós grandemente através do diálogo,
e se admitirmos o recurso ao diálogo (frequentemente ao monólogo)
como um dos traços que mais evidenciam essa ligação à linguagem
teatral, convém lembrar as palavras de Bordwell a respeito daquilo
que ele designou como "realismo psicológico" - um cinema
em que o diálogo surge como uma "dissecação dos sentimentos
através da qual as personagens se revelam aos outros e a nós"
e que faz com que o avançar da intriga seja interrompido por
momentos em que as elas evocam "histórias, acontecimentos
autobiográficos (especialmente da infância), fantasias e sonhos"
de forma a "exprimir e a explicar os seus estados de espírito"
- para compreender de que forma é trabalhado o diálogo no filme,
para isso sendo imprescindível ter em atenção a relação que
Bergman cria entre a palavra dita e o espaço em que a acção se
desenrola, parecendo existir a intenção de estabelecer um contraste
entre o espaço - a mansão em que a acção decorre, com toda a sua
austeridade
e atmosfera de aparente sobriedade,
sempre mergulhada num silêncio em que a única coisa que parece
ganhar materialização é o passar do tempo, através do relógio,
como constatamos no começo do filme - e os diálogos que as
personagens mantêm entre si, e que chocam com esse equilíbrio da
arquitectura do espaço em que se inserem por nos revelarem
gradualmente todos os conflitos interiorizados de cada uma delas, e
que as leva a explodirem em autênticos gestos de violência (mais
psicológica do que propriamente física) a que o décor opõe uma
sensação de tranquilidade que só o é aparentemente.
O diálogo revela-se assim indissociável do tratamento do espaço, e, mais particularmente, do corpo. Essa repressão de sentimentos tão comum em Bergman ganha na linguagem corporal das personagens uma enorme expressividade, produzindo alguns dos momentos mais pungentes e dilacerantes em todo o filme, como é o caso do momento de aparente reconciliação entre Maria e Karin, na recta final do filme.
"Lágrimas" é um filme a que inevitavelmente regresso de quando em vez, exactamente nesses momentos em que a minha memória dele se me começa a tornar difusa e sinto, subitamente, uma necessidade de o rever para de novo tornar vivos esses pormenores de que me vou aos poucos esquecendo, mas o momento, no início, em que as irmãs de Agnes, a protagonista, e Anna, a criada, surgem vestidas de branco num décor em que as paredes, o chão e cortinas estão mergulhadas em vermelho, é uma imagem da qual nunca me consegui verdadeiramente livrar (nunca conseguirei, ouso), e que, à luz dos significados de que se revestirá gradualmente o branco dos vestidos e o vermelho das paredes, ganha força precisamente pela sua capacidade de nos sugerir, ainda que de forma misteriosa (e mais cativante por isso) a dimensão dos conflitos interiores das personagens, que encontram no vermelho do décor (o vermelho, no qual se dissipam os grandes planos dos rostos delas que alternam o foco narrativo entre as protagonistas) um prolongamento de si mesmas, do qual se encontram permanentemente afastadas pelos vestidos – brancos, cinzentos, pretos, à medida que o filme avança – que funcionam igualmente como manifestação exterior da repressão que, com consequências particulares a cada uma, se constata para todas, no final, igualmente inescapável.
Os corpos (em conflitos entre eles, e com o próprio espaço que os rodeia) merecem de Bergman, como tal, uma abordagem que confere ao filme uma atmosfera de claustrofobia que enquadra as personagens quase sempre num ponto de uma quase asfixia – excepto nas situações em que o plano as abstrai do espaço em redor, como na já referida cena em que se esboça uma possível reconciliação entre Karin e Maria, após a morte de Agnes –, ideia que a banda sonora, preenchida pelo silêncio, por murmúrios e palavras que hesitam em pronunciar-se, e a profundidade de campo (afinal, o cinema encontrava a sua qualidade distintiva, para Bergman, na “possibilidade de se aproximar do rosto humano”, que era também a sua “originalidade primeira”) sucessivamente exploram, os planos do rosto de Agnes – completamente impotente ante um sofrimento que só se torna suportável graças à proximidade de Anna (à consciência da proximidade dela) e à memória de um passado de felicidade no qual coexistem a recordação da mãe, do seu deambular pelo parque sob o olhar de Agnes, e o passeio que darão as irmãs depois em adultas no flashback com que o filme encerra – sendo das imagens mais angustiantes que o cinema me levou a contemplar. Isso e um outro momento, no início, em que a um plano que nos mostra Agnes a dormir e Maria, numa sala contígua, entretanto também adormecida, se sucede um grande plano do rosto de Agnes a acordar, o rosto perturbado pela doença: contida neste corte está a ideia de que Agnes está sozinha no seu sofrimento. E é com esta constatação, profundamente desoladora, de uma solidão incontornável que o filme se inicia. Que cinema – que vida – depois disto?
Rúben
Gonçalves
a sério, mesmo!
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