sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Glória — texto da folha de sala


Glória chora. Deram-lhe boleia. A música - com que se entretêm os homens que ali vão também -, que deixáramos de ouvir antes de ela entrar na carrinha, e que volta a estar presente nesse momento, distrai-os desse pormenor. Só Ivan repara: Ivan, esse rapaz forasteiro cujo primeiro contacto com aquela vila do interior surge sob a forma do nome dela escrito numa parede. Quem o escreveu? E por que chora Glória?
Não o sabemos realmente. É um espaço que pertence às personagens, e que não chegamos nunca a invadir, esse que nos daria resposta a estas questões. O filme, que estabelece desde logo o seu interesse pela reacção, pela consequência, e não propriamente por aquilo que as despoleta, adopta sobre aquilo que se propõe contar uma postura que nos lembra a cada momento que a vida acontece, e que dela só temos (só podemos ter?) alguns vislumbres. O tempo no filme torna-se algo suspenso, que escapa à nossa tendência para o precisar: houve um incêndio na casa do pai de Ivan (acontecimento que tem ecos muito acentuados para algumas das personagens, e que a memória dos habitantes da vila, e o pai de Ivan em especial, não deixa ficar no passado), sabemos que foi há dois anos, mas aquilo que realmente se instala no filme é um tempo indeterminado, imbuído de sugestões de mudança que sublinham o carácter transitório de todas as coisas humanas. Esta noção de uma mudança (da qual não temos senão indícios de que acontecerá mais cedo ou mais tarde) parece presidir ao tratamento do espaço, que nela aparece mergulhado, os locais - a estação de comboios que vai fechar, a ponte destruída, a casa que o pai de Ivan ocupa enquanto não conclui a reconstrução daquela que o fogo deixou em ruínas - tornando-se espaços de passagem, a permanência das personagens neles destinada a ser efémera, num filme em que o que ganha relevância não é tanto o destino (para o qual as caminhadas das personagens convergem ou não) mas o percurso que elas percorrem, esta noção estando de alguma forma presente na própria forma como a câmara se posiciona relativamente ao que é filmado, enquadrando-se pontualmente uma significativa porção do chão, sobre o qual a câmara se deixa ficar inclusivamente num momento em que duas personagens dão uma caminhada à chuva. Os encontros entre as personagens acontecem muitas vezes enquanto elas se deslocam para um dado local, esse local raramente se revelando um destino comum: as relações humanas transformam-se elas próprias em espaços de transição, momentos de interlúdio, de interrupção de um percurso que invariavelmente reclamará a sua separação.



Em off surge assim o passado (o incêndio da casa, que o rancor vivido pelo pai de Ivan relativamente ao seu possível perpetrador, Mauro, traz constantemente ao presente), e também o futuro ou os seus indícios (a referida destruição da ponte chega até nós através do som; a estação de comboios vai fechar mas não nos é chegado a dizer dali a quanto tempo), o foco recaindo sobre os sintomas experimentados pelas personagens ante a inevitabilidade dessa mudança (a cena do pai de Ivan com o cão é um pequeno exemplo disto).

Com efeito, é precisamente num momento de transição que o filme enquadra Glória, a personagem com quem Ivan trava amizade, transição entre a infância e os primeiros estádios da vida adulta, e que aqui passa pelo seu despertar para o impacto que tem sobre os homens esta rapariga que ainda se senta com os mais novos a ver desenhos animados. O momento do supermercado, com o homem que fica a observá-la depois de ela sair, é ilustrativo deste poder que ela começa a adquirir e que, no fundo, é uma coisa (ainda) exterior a ela; são-no também as relações que ela estabelece com Mauro, regressado agora da prisão, e Ivan. Certa noite, Glória sai da cama e vê ao longe, pela janela, uma mota (a mota de Mauro?); Ivan chega à vila e vê o nome dela escrito na parede: a vida dos dois é mudada antes mesmo de eles conhecerem as pessoas que vão desencadear essa mudança. Mauro, esse misterioso homem da mota, relativamente a quem Glória sente dificuldade em posicionar-se, funciona para Ivan como uma espécie de rival no que à atenção dela diz respeito, e os movimentos destas relações surgem materializados na cena do carrossel: Glória, já sentada e em andamento, chama Ivan, que não ocupa o lugar a seu lado porque entretanto surge Mauro, que, sem pedir, se senta ao lado dela. Ivan senta-se atrás e grita por Glória, incitando-a a olhar para ele: mas o chamamento da vida adulta, que Mauro por outro lado representa, é algo entretanto impossível de ignorar. E entre ele e Glória - que surge como uma sobrevivente desde o primeiro encontro entre os dois, encarando-o com hostilidade depois de ter sido atacada por uns rapazes lá da aldeia e assumindo para com ele uma postura que não revela traços de um carácter indefeso, mas antes de uma natureza algo indomável, exteriorizada pela forma quase animalesca como ela se move ao sair da água, que ela retomará depois junto aos carris, quando encontra Ivan de bicicleta - há já um abismo. Vemo-los andar de barco: quem o puxa é ela. Glória está a tornar-se adulta - e Ivan, que ainda se diverte com brincadeiras debaixo da cama, não a consegue acompanhar, nem tampouco aproximar-se de Mauro. E novamente a ideia de caminho como elemento caracterizador das personagens e produtor de sentido: Mauro e Glória andam de mota, à noite; Ivan corre atrás deles, pela estrada; acaba a bater numa árvore, gritando "larga-me!". Mas já não consegue livrar-se de Glória.


"O Ivan não sai do quarto há dois dias", ouvimos a dada altura, enquanto a imagem no-lo mostra atrás de uma janela, ligeiramente desfocado, a olhar lá para fora. Não se pode dizer que aquilo que vemos seja uma reacção dele ao que é dito, mas o facto de essa informação nos levar para esta imagem estabelece forçosamente um diálogo entre elas, através de uma ideia de montagem que lança para segundo plano não só as causas mas também a própria noção de causalidade, e que atravessa todo o filme. A construção narrativa dá-se pois através das entrelinhas nas quais a história surge diluída, e reforça um certo desejo de invisibilidade do narrador: ou, antes, um desejo de apagamento da consciência de que se está a contar algo que foi necessariamente construído. O trabalho de som reforça o tom algo onírico que a construção narrativa e temporal do filme lhe conferem, havendo em tudo (na mise-en-scène extremamente cuidada, que faz as personagens movimentarem-se dentro e fora de campo de um modo que nos reforça a convicção de que estas vidas se poderiam desenrolar independentemente dela, da sua presença) um cuidado sobre o sentido que o torna misterioso, mas não imperscrutável. Intriga-nos o que fica por dizer; e o que presenciamos assombra-nos, recorda-nos a cada instante da impossibilidade de nos inteirarmos completamente das circunstâncias nas quais se desenrola a existência dos que nos rodeiam. De outro modo, como poderíamos encarar o plano que abre o filme, com a idosa a vir à varanda e a dizer adeus, relativamente ao resto do filme? Despede-se ela de Ivan antes de ele partir com a mãe? Será ela Glória, e a viagem de carro que se segue uma forma de sermos lançados para o passado, para um espaço que é essencialmente o da memória dela? Somos deixados sem respostas, mais uma vez: mas as perguntas têm muito mais eco precisamente por serem sugestões, e as personagens muito mais vida devido a esse espaço que lhes é reservado a elas e a nós. Filme de vestígios, inquieta particularmente enquanto desafio ao modo como lidamos com a impossibilidade de certezas, de explicações - e porque nos abandona às nossas próprias dúvidas. Como lidar com o indizível? Essa talvez a pergunta que "Glória" tem a coragem de colocar e, também, de deixar sem resposta.

Rúben Gonçalves


1 comentário:

  1. Gonçalves & Gonçalves? o Tumblr só serve para adições e likes, portanto, "disliko". Não querendo perturbar-vos e incomodar-vos, o que fazer com a dramaturgia académica de um filme, deste filme? O que fazer com a (sua) beleza é simples, é deixá-la entrar; mas e a diegese que a fecha e claudica? Por que o cinema se estraga sempre tanto com a má literatura? O texto de sala é bem bom, mas seria um bombom se nos livrássemos da dependência interpretativa psicologista. Não será um filme o que vemos e não o que analisamos? De análise psico-terapêutica. A escola Bénard, eu sei, e francesa, por extensão. Mas e se deixássemos de ir à escola? Teríamos mais Vigo e Boudous, pela graça da liberdade.

    Beijo de um observador distanciado

    j.

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