domingo, 28 de outubro de 2012

The River, uma reflexão


I'm not crying because you are going. I'm crying because it is going. (...) This being together in the garden. All of us happy and you with us here. I didn't want it to change, but it's changed. I didn't want it to end, but it's gone. It was like something in a dream. Now you've made it real. I didn't want it to be real!

 À saída de dois filmes que vi recentemente, dei por mim a conversar com as pessoas com quem os partilhei sobre essa questão aparentemente tão difícil de resolver relacionada com a natureza do cinema, com as propriedades ou características que nos permitem reconhecer uma determinada obra como um objecto cinematográfico; confesso que de ambas as vezes saí insatisfeito com as intervenções que escutei, e eu próprio não fiquei convencido com as minhas respostas. Longe de querer aproveitar este espaço para dar voz às minhas convicções pessoais a respeito do assunto, penso que é este um bom ponto de partida - "o que é, afinal, o cinema?" - para a breve reflexão sobre o filme de Renoir que vimos esta sexta-feira passada, se tivermos em conta dois pontos: que essa é uma pergunta a que todos os realizadores se propõem responder sempre que concebem um filme, e que "The River" não existiria sem os décors naturais em que a acção se desenrola, condição que desde a sua génese foi encarada por Renoir como indiscutível para a sua concretização e pormenor que não nos parece supérfluo à luz do discurso do filme (sobre o qual discorreremos em seguida) e que nos leva a um dos aspectos mais marcantes aqui, isto é, a presença da paisagem (a presença da Índia) no filme.

 Os primeiros planos - as mãos femininas que desenham a giz, os pescadores em contenda com os remos nos barcos - e respectivo acompanhamento musical mergulham-nos desde logo, juntamente com a voz-off de Harriet (que assim se assume como um mecanismo que será recorrente no filme), nas tradições indianas em que a história encontra as suas raízes, e também nós não demoramos a sentir aquele enlevo descrito por Renoir a propósito do efeito que a sua estadia na Índia teve sobre ele, enlevo cuja verdadeira natureza ainda não discernimos mas que terá algo a ver com os tecidos das cortinas que trazem para dentro das casas uma luz que já não é a mesma que dá às conversas na rua o seu compasso característico, e que nos mostra, em todo o seu esplendor e vivacidade, as cores das fachadas das moradias, da relva e das árvores floridas; com as sombras que projectam essas árvores, segundo os caprichos da movimentação do sol, e também as pessoas cujas existências as reúnem em torno delas, quer seja em brincadeiras (Harriet e os irmãos no jardim, nos momentos iniciais do filme), em dissimuladas confissões de sentimentos no baloiço, ou a entregarem-se aos suaves prazeres de uma sesta vespertina - tal como Renoir, também nós sentimos esse encantamento pela Índia, também nós nos sentimos intrigados pela sua paisagem e pelas margens dos seus rios, junto das quais os anciãos aprendem a sabedoria desse país milenar, e que Harriet descreve, a dada altura, com as seguintes palavras: "Queria escrever cada vez mais. Sempre sobre o rio. Queria contar ao Cap. John como as pessoas dependem do rio espírita e fisicamente. O povo do rio e o povo da aldeia. Como os trabalhadores da juta se refrescam no rio após um duro dia de trabalho e os homens lavam as suas roupas. Sobre os velhos que se aquecem ao sol. Sobre as crianças que nadam e chapinham na água. Sobre os outros que vagueiam e meditam..."

 Ora, tal como Bénard da Costa, ao referir-se à árvore (a "Árvore do Povo", a que se dirigem as mulheres para pedir a bênção de um filho), a lembrou como sinal do permanente e do efémero, lançando luz sobre a justaposição dessas duas realidades, há em "The River" um tratamento da paisagem que, além de conferir ao filme um tom fortemente pictorial (Renoir cresceu, afinal, entre a pintura), sobrepõe precisamente os acontecimentos humanos, com as suas tragédias mais ou menos significativas, e a placitude da natureza: o momento mais ilustrativo disto mesmo sendo a cena do funeral de Bogey, em que, no mesmo plano, nos é dada a ver a procissão atrás do caixão e os animais que, lá ao fundo, se alimentam das ervas. A relação que o filme estabelece com a natureza assenta, pois, nas ideias de ciclo e circularidade: ao ciclo da vida (com especial ênfase no que respeita aos momentos do nascimento e da morte) preside a circularidade segundo a qual tudo o que nasce do rio a ele regressa - é o rio, que conta todas as histórias, de onde todas elas partem e onde virão invariavelmente desembocar, que faz chegar Cap. John às vidas de Harriet, Valerie e Melanie, no barco a vapor: o barco a vapor trá-lo, no início, e levá-lo-á para longe, no final do filme; Bogey, o irmão de Harriet, que surge desde os primeiros minutos associado aos animais, morre devido à mordidela de uma cobra - e, no momento do seu funeral, a cerimónia coexiste com o gado que pasta nos prados, uma ideia que Bresson revisitaria no final do seu "Au Hasard Balthazar" ao deixar o seu protagonista, depois de uma vida sujeita às vontades dos humanos, aos seus maus cuidados e negligências, morrer entre os animais, depois de ser baleado.

 Com efeito, a circularidade é um factor a considerar na tensão entre realidade e sonho que o filme trabalha no seu âmago, e relaciona-se, mais uma vez, com os dois grandes acontecimentos do filme: a paixão que as três raparigas desenvolvem pelo Capitão John e a morte de Bogey. Podemos dizer, ao atentar nas primeiras cenas do filme, que Harriet e as amigas levam as suas existências numa espécie de idade da inocência, cuja tranquiliadade a chegada de Cap. John vem perturbar, ao introduzir a realidade do amor no mundo fantasiado de Harriet, a morte de Bogey funcionando, depois, como a derradeira sobreposição da realidade ao sonho - interrompendo-o literalmente, se tivermos em conta como a descoberta da morte de Bogey se dá: vemos, a começar por Harriet, no jardim, uma sequência em que os elementos da família fazem a sesta nas diversas divisões da casa, excepto Bogey, que vai brincar com o amigo Kanu para a Árvore do Povo, junto da qual avistara uma cobra; voltamos a Harriet, que, ao despertar, dá pela ausência de Bogey e o vai encontrar, já morto, junto à árvore, havendo neste deste despertar um valor simbólico tal que não seria deslocado dizermos que é este o momento em que a trajectória pessoal de Harriet ao longo da história a conduz finalmente ao alcance da maturidade. Antes de falarmos do crescimento, do alcançar da maturidade, questões muito centrais no filme, convém contudo atentar num outro elemento que testemunha a importância da materialidade da paisagem em "The River": o muro. O muro, que separa a casa de Harriet da casa do vizinho Mr. John, relaciona-se com a tensão entre realidade e sonho uma vez que Renoir decide colocar as suas protagonistas atrás dele em dois momentos-chave, que decorrem além-muro - a chegada de Cap. John e a procissão fúnebre da morte de Bogey, respectivamente -, estabelecendo-o, assim, como uma barreira física entre o mundo familiar - o mundo do sonho, enfim, associado a Nan ("the bridge to life"), aos serões passados na companhia da música e às brincadeiras no jardim - e o mundo real, associado ao Cap. John e à morte de Bogey, havendo no pormenor de elas assistirem a estes dois momentos resguardadas pelo muro a manifestação da dimensão circular da construção narrativa do filme ("clay goes back to clay", diz-nos Harriet sobre Kali e os rituais de celebração dessa deusa da criação e da destruição que inspirou aos indianos a crença de que uma coisa não pode ter lugar sem a outra) mas, também, a sugestão do ciclo destinado a repetir-se que é, no fundo, a existência de cada um de nós: o rio traz Cap. John até elas, e é ao rio que Harriet regressa no esforço vão de reencontrar Bogey depois da sua morte, com a sensação de que tanta coisa ficou por lhe contar; mesmo a narrativa que Harriet relata a propósito da cerimónia tradicional do casamento indiano arranca de Valerie a observação de que aquilo não tem fim, estando tudo fadado a repetir-se com o nascimento da rapariga, momento de suspensão da intriga do filme propriamente dita que, contudo, prenuncia o seu final, com o nascimento da irmã de Harriet.

 Assim sendo, há em "The River" a noção de que o crescimento de Harriet e das amigas se dá através do contacto com as realidades do amor e da morte, e de que o nascimento está sempre intimamente relacionado com a morte (não havendo propriamente uma relação causal entre os dois eventos, o facto é que à morte de Bogey sucede o nascimento da irmã). Dissemos antes que o tema do crescimento é algo de extrema relevância na compreensão do filme, e bastaria evocarmos as palavras que, em off, surgem no seu início para dissiparmos quaisquer dúvidas: "it is the story of my first love, and about growing up in the banks of the river". Desde aqui que o filme faz coincidir o crescimento das suas protagonistas com a descoberta do amor, ideia muito Jane Austeniana que ganha força nas palavras da mãe de Harriet no momento em que ela discorre sobre a experiência da maternidade, inserindo-a nesse ciclo interminável de começos e fins ao dizer à filha que ter filhos do homem que se ama "it's a precious, sanctified work", sendo o acontecimento que confere sentido à vida de uma mulher - o acto de amor figurando-se como sagrado, para ela, porque indissociável do acto de criação, de nascimento, de vida que se inicia. Tal como o amor, diz-lhe ela, esta é uma experiência que é dolorosa precisamente porque é suposto fazer pensar e sentir aquelas que a protagonizam. São, no fundo, as growing pains de Harriet, e há diversos momentos do filme que testemunham esse crescimento que está ainda em vias de se dar, momentos de uma tremenda manifestação da humanidade da personagem e que a separam de Valerie e de Cap. John, que muitas vezes a encaram com alguma condescendência: lembremo-nos, por exemplo, da cena em que Harriet anuncia saber tudo sobre Krishna, na tentativa de impressionar Cap. John, mas vendo-se forçada a perguntar-lhe, e a Valerie, como se soletra o nome desse deus; ou a cena em que Harriet se propõe a mostrar a Cap. John o seu livro de poesia - a poesia, que surge enquanto sinal da maturidade de Harriet e meio através do qual ela busca captar a atenção e interesse do Cap. John - explicando-lhe que "é um segredo" do qual estão a par, contudo, Nan, a mãe e outros elementos da família, como ela logo lhe revela.

 Há, porém, uma cena do filme que materializa quase literalmente, através do staging da acção, estas ideias que relacionam o crescimento das protagonistas com o amor, o mundo de casa de Harriet, o jardim em que se trocam todas as confidências, e a realidade lá fora - temos em mente a cena em que Cap. John segue Melanie até à floresta, sendo ele seguido, por sua vez, por Harriet e Valerie, que correm atrás dele com flores nas mãos para lhe oferecer. Ora, para irem atrás dele, quer Harriet, quer Valerie têm ultrapassar o muro da casa (e isto é deixado bem claro pelo plano que nos mostra Valerie saltando-o e correndo, atrás de Harriet, em direcção à floresta), e a voz off de Harriet surge nesse momento para nos dizer que "suddenly we were running away from childhood, rushing toward love", sublinhando o carácter simbólico não só desse gesto particular mas de que se revelará carregada a própria cena, tal como as da chegada de Cap. John e do funeral de Bogey, que referimos anteriormente. O modo como a cena progride não é difícil de resumir: as quatro personagens chegam à floresta e acabam por dispersar-se entre as árvores; Valerie surge junto ao Cap. John e interpela-o, os dois acabando por se beijar sob o olhar de Melanie e Harriet. A esse beijo segue-se o monólogo de Valerie que serviu como introdução a este texto, havendo no travelling que encerra a cena e que nos afasta de Valerie e de Cap. John a sensação, que parte do interior das personagens e que nos vem envolver, de que algo se perdeu irrevogavelmente nesse momento. Poderíamos ousar mesmo dizer que o staging da acção nesta cena ilustra o fascínio de Renoir pela Índia (um ano lá tornara-o diferente, como o próprio confessou: "A Índia deu-me uma certa compreensão da vida, (...) ensinou-me talvez a ser um pouco mais paciente na vida, a compreender talvez que cada um tem as suas razões"), ao termos Cap. John, o forasteiro, a lançar a cena ao ir atrás de Melanie, a bela indiana, cativado pelo seu mistério e pela ambiguidade que caracterizara o momento anterior entre eles, dentro da casa. E este fascínio pela Índia vivido por Renoir, esta ânsia de a revelar um pouco aos que nunca a visitaram (não obstante ele ter admitido que para um francês a Índia é um lugar muito fácil de compreender), justifica talvez a natureza fortemente documental do filme - que se manifesta sobretudo nos momentos dedicados a elucidar-nos sobre a natureza da cerimónia de Diwali, a vida dos pescadores, o modus operandi dos trabalhadores da fábrica de juta que o pai de Harriet possui, as celebrações a propósito de Kali, ou a sequência em que nos é dado a ver uma série de escadarias que vão dar directamente ao rio - e com a qual a voz-off (presente desde os momentos iniciais, e sem a qual o filme nos parece inconcebível) se relaciona intimamente, pormenor que a resgata da mera função de comentário ou de exteriorização dos sentimentos e pensamentos de Harriet, que a poderia tornar irrelevante ou, pelo menos, redundante (algo que, felizmente, nunca acontece), voz-off essa cuja presença se torna ainda mais significativa se tivermos em conta que se tratou de uma decisão de montagem.

O rio, a árvore, o muro. O ciclo, a circularidade - o consentimento: é essa a postura a que o filme no final aspira a fazer o encómio, atitude que surge enraizada nas tradições indianas em que a história vem imbuída e que, também ela presente em Ozu, por exemplo, parece conter a chave para a continuidade desse ciclo que, no filme, reúne a aceitação da morte de Bogey, o ferimento que para sempre isolou Cap. John das pessoas com quem se relaciona, o amor que ele nunca dedicará a Harriet, e Melanie e o mistério das suas origens: a maturidade surge assim, para eles, não como uma ultrapassagem desses conflitos interiores, mas como a aceitação desses dilemas e paradoxos com os quais as vicissitudes das nossas existências nos fazem conviver.

Rúben Gonçalves

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