De The River se tem dito e redito que é o mais belo filme do mundo. Ninguém, que não seja cego, recusará essa alucinante beleza. E, no entanto os mais fervorosos renoirianos raramente o citam entre os seus preferidos. Lembramos Renoir e vem à memória La Règle du Jeu, La Carrozza d'Oro, La Nuit du Carrefour, Le Crime de Monsieur Lange, Diary of a Chambermaid, Eléna et les Hommes, Le Testament du Dr. Cordelier. Depois diz-se e é verdade, The River. The River está assim para a obra de Renoir um pouco como as Afinidades Electivas para a de Goethe, a Mensagem para a de Pessoa, a Vénus (de Dresde) para a de Giorgine, A Clemência de Tito para a de Mozart. São coisas muito grandes, muito belas, mas que parecem pouco características, onde só com alguma dificuldade encontramos o que mais nos fascina nesses autores. Ninguém diz que e secundário, mas fica como um parêntesis.
Dar a palavra a Renoir talvez seja a melhor maneira de explicar o mistério do Rio.
Renoir associou sempre este filme à Idade Média:
"O que me permitiu perceber um bocadinho o que pode ter sido a arte da Idade Média, foi a minha estadia na Índia, na altura do Rio. Na Índia, há ainda artes não difundidas, que são arte da maior, juro-lhes. Há ainda na Índia cantores e bailarinos que correspondem ao que devem ter sido os trovadores e os baladeiros na Idade Média. Um trovador não difundia nada. Espalhava-se a si próprio. Ia até às quintas, aos castelos, às praças públicas. Como não havia difusão, não havia especialização (...). Hoje vivemos numa época em que a arte se tornou puramente subjectiva, perdeu o sentido do concreto, refugiou-se no espiritual inacessível e gelado. Tive uma conversa a propósito disto com Dali que me disse uma coisa inteligentíssima. Disse-me: 'No princípio, os artistas olhavam o mundo de muito longe. Representavam grandes batalhas, três mil cavalos, árvores pequenas, céus infinitos, cidades, fortificações. No Renascimento, aproximaram-se ainda mais. Agora, já estamos do outro lado do olhar. Os temas não estão diante dos olhos, mas atrás deles'".
É extremamente curioso que Renoir aproxime esta conversa com Dali de The River. E é-o, porque a obra imediatamente anterior - esse fabuloso e misterioso The Woman on the Beach, - já reflecte essa visão, esse "outro lado do olhar". Quem tiver visto esse filme, lembrará que nunca vemos nele os quadros por Charles Bickford, o marido cego de Joan Bennett, nem sequer o retrato dela. Literalmente, nessa obra os temas não estão diante dos olhos (ocultados sempre à nossa visão e à visão do cego) mas por detrás deles.
Mas se The Woman on the Beach é um filme "inacessível e gelado", The River não o é. Atenuou-se o pessimismo do autor, tão sublinhado nos seus desesperados filmes americanos? Renoir, numa entrevista, falou em duas vertentes da sua obra: a vertente pessimista e a vertente de compreensão. E disse:
"O meu pessimismo provém do facto de sentir a amargura que pesa sobre a civilização que deu homens como Mozart ou como o meu pai, mas a minha compreensão ('bienveillance') provém de estar convencido que, apesar de tudo, os homens vão descobrir uma maneira. Uma nova tentativa de construcção da Torre de Babel (...). Dirigimo-nos a um mundo essencialmente instável, nós próprios somos instáveis. Evidentemente temos o direito de ser pessimistas, mas há momentos de grande confiança, por exemplo a confiança que tive quando filmei O Rio (...), a compreensão do que Melanie chama 'consentir' quando explica os seus problemas ao americano ferido e nervoso".
The River é o filme desse consentimento que se pode ler também etimologicamente. É voltar a olhar para as coisas de muito longe, é o regresso ao que Renoir chama a visão medieval. E, embora nunca talvez obra sua tenha sido tão marcada pela pintura do pai, não há aí qualquer contradição. O consentimento consente tudo: a integração de Harriet, Valerie e do Capitão John no mundo de Melanie e dos seus deuses indianos, a integração da pintura de Renoir na arte ainda não especializada da civilização indiana, a integração dum progresso numa tradição. Donde a harmonização total, donde a beleza total, donde a paz total.
Saudados no início (actores e espectadores) pelo sinal com que são saudados os visitantes (na Índia), Renoir começa logo por nos recordar essa situação, dele e nossa. Não se pretende fazer passar por um autócne, por alguém que nuns meses tenha assimilado a visão indiana. É, como nós somos, um visitante. Ou seja, alguém que vem para ver. E para ouvir a história dum primeiro amor, igual a tantos outros, diferente de tantos outros. Pelo olhar de Renoir (um visitante de 56 anos) e pela voz duma adolescente (Harriet) estamos na Índia e no Rio. Os barcos, os templos, uma família de 5 pessoas, uma criada, amigos hindus. E uma árvore, essa portentosa árvore e que, do início ao fim, sem folhas e sem flores, ou coberta delas (nos fantásticos planos encarnados finais, pintados à mão por Jean Renoir e Claude Renoir) irá, como no rio, ser o centro da narrativa, o sinal do permanente e do efémero.
O rio como a árvore são grandes símbolos femininos e este é mais um filme feminino de Renoir. Há o pai, há o irmão mais novo, há o miúdo que depois genialmente introduzirá a morte nesta história, mas faltava o homem "ponte para a vida", aquele que transforma os sonhos em realidade e a realidade no sonho. E o homem chega, Mr. John, Captain John, personagem dividida, sinal de conflito, introdutor dos conflitos. Amado por Harriet, por Valerie, por Melanie, na difícil aprendizagem do consentimento. Com ele chega a festa mas a árvore também se torna (com ele) árvore do bem e do mal. Ao contrário do mito do Génesis (genial inversão de Renoir), o homem é quem permite o conhecimento dum e doutro, o fruto proibido.
Todo o universo é Deus, e desse universo faz também parte Kali, deusa da destruição (como a família aprenderá explicitamente com a morte do miúdo) mas que implicitamente surge associada a tudo o que divide as pessoas: os ciúmes, os segredos (o espantoso esconderijo de Harriet), o tempo sentido como perda e não como ganho. Não é por acaso que Kali é deitada ao rio na sequência do primeiro cigarro fumado por Valerie, sob o olhar ciumento da irmã e veladamente triste de Melanie.
Mas tudo faz parte do mesmo mundo identificado a Deus. Tal como não há pessoas feias (como a mãe explica a Harriet), tal como não há pessoas sem lugar (o capitão), tal como a noite se sucede ao dia, as estações umas às outras e um nascimento a uma morte (e quando nasce o bébé, caem as três cartas e tudo o mais deixa de ser importante). "Só peixes, só pássaros, só mulheres".
Não se acabava se se quisesse enumerar todas as coisas belíssimas deste filme. Mas não resisto, para além do muito já referido, a chamar a particular atenção para duas: as duas sequências do papagaio ("and he was closer to me", com o céu, árvores e a panorâmica pela arvore acima) e a sequência da cerimónia nupcial, que, de certo modo, concentra todo o filme, com a sequência paralela do enterro no rio.
O visitante Renoir olhou tudo em igual atenção e em igual beleza. Sabendo que "a meditação é um vasto mundo" e que ele próprio ("jamais contemplativo") só podia ir, através do olhar, ao fundo do mundo que via. O mundo humano onde tudo passa (os pequenos e grandes sofrimentos, as pequenas e grandes alegrias) e o mundo que rodeia os humanos e, para além deles continua, como o rio, onde jamais nos podemos banhar duas vezes nas mesmas águas.
Entre as sestas, os balouços, as fugas e os regressos, o "amor ocidental", associado à morte: "Captain John, I Love You".
Texto publicado em As Folhas da Cinemateca - Jean Renoir
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