I'm not crying because you are going. I'm crying because it is going. (...) This being together in the garden. All of us happy and you with us here. I didn't want it to change, but it's changed. I didn't want it to end, but it's gone. It was like something in a dream. Now you've made it real. I didn't want it to be real!
À saída de dois filmes que vi recentemente, dei por mim a conversar com as pessoas com quem os partilhei sobre essa questão aparentemente tão difícil de resolver relacionada com a natureza do cinema, com as propriedades ou características que nos permitem reconhecer uma determinada obra como um objecto cinematográfico; confesso que de ambas as vezes saí insatisfeito com as intervenções que escutei, e eu próprio não fiquei convencido com as minhas respostas. Longe de querer aproveitar este espaço para dar voz às minhas convicções pessoais a respeito do assunto, penso que é este um bom ponto de partida - "o que é, afinal, o cinema?" - para a breve reflexão sobre o filme de Renoir que vimos esta sexta-feira passada, se tivermos em conta dois pontos: que essa é uma pergunta a que todos os realizadores se propõem responder sempre que concebem um filme, e que "The River" não existiria sem os décors naturais em que a acção se desenrola, condição que desde a sua génese foi encarada por Renoir como indiscutível para a sua concretização e pormenor que não nos parece supérfluo à luz do discurso do filme (sobre o qual discorreremos em seguida) e que nos leva a um dos aspectos mais marcantes aqui, isto é, a presença da paisagem (a presença da Índia) no filme.
Os primeiros planos - as mãos femininas que desenham a giz, os pescadores em contenda com os remos nos barcos - e respectivo acompanhamento musical mergulham-nos desde logo, juntamente com a voz-off de Harriet (que assim se assume como um mecanismo que será recorrente no filme), nas tradições indianas em que a história encontra as suas raízes, e também nós não demoramos a sentir aquele enlevo descrito por Renoir a propósito do efeito que a sua estadia na Índia teve sobre ele, enlevo cuja verdadeira natureza ainda não discernimos mas que terá algo a ver com os tecidos das cortinas que trazem para dentro das casas uma luz que já não é a mesma que dá às conversas na rua o seu compasso característico, e que nos mostra, em todo o seu esplendor e vivacidade, as cores das fachadas das moradias, da relva e das árvores floridas; com as sombras que projectam essas árvores, segundo os caprichos da movimentação do sol, e também as pessoas cujas existências as reúnem em torno delas, quer seja em brincadeiras (Harriet e os irmãos no jardim, nos momentos iniciais do filme), em dissimuladas confissões de sentimentos no baloiço, ou a entregarem-se aos suaves prazeres de uma sesta vespertina - tal como Renoir, também nós sentimos esse encantamento pela Índia, também nós nos sentimos intrigados pela sua paisagem e pelas margens dos seus rios, junto das quais os anciãos aprendem a sabedoria desse país milenar, e que Harriet descreve, a dada altura, com as seguintes palavras: "Queria escrever cada vez mais. Sempre sobre o rio. Queria contar ao Cap. John como as pessoas dependem do rio espírita e fisicamente. O povo do rio e o povo da aldeia. Como os trabalhadores da juta se refrescam no rio após um duro dia de trabalho e os homens lavam as suas roupas. Sobre os velhos que se aquecem ao sol. Sobre as crianças que nadam e chapinham na água. Sobre os outros que vagueiam e meditam..."
Ora, tal como Bénard da Costa, ao referir-se à árvore (a "Árvore do Povo", a que se dirigem as mulheres para pedir a bênção de um filho), a lembrou como sinal do permanente e do efémero, lançando luz sobre a justaposição dessas duas realidades, há em "The River" um tratamento da paisagem que, além de conferir ao filme um tom fortemente pictorial (Renoir cresceu, afinal, entre a pintura), sobrepõe precisamente os acontecimentos humanos, com as suas tragédias mais ou menos significativas, e a placitude da natureza: o momento mais ilustrativo disto mesmo sendo a cena do funeral de Bogey, em que, no mesmo plano, nos é dada a ver a procissão atrás do caixão e os animais que, lá ao fundo, se alimentam das ervas. A relação que o filme estabelece com a natureza assenta, pois, nas ideias de ciclo e circularidade: ao ciclo da vida (com especial ênfase no que respeita aos momentos do nascimento e da morte) preside a circularidade segundo a qual tudo o que nasce do rio a ele regressa - é o rio, que conta todas as histórias, de onde todas elas partem e onde virão invariavelmente desembocar, que faz chegar Cap. John às vidas de Harriet, Valerie e Melanie, no barco a vapor: o barco a vapor trá-lo, no início, e levá-lo-á para longe, no final do filme; Bogey, o irmão de Harriet, que surge desde os primeiros minutos associado aos animais, morre devido à mordidela de uma cobra - e, no momento do seu funeral, a cerimónia coexiste com o gado que pasta nos prados, uma ideia que Bresson revisitaria no final do seu "Au Hasard Balthazar" ao deixar o seu protagonista, depois de uma vida sujeita às vontades dos humanos, aos seus maus cuidados e negligências, morrer entre os animais, depois de ser baleado.
Com efeito, a circularidade é um factor a considerar na tensão entre realidade e sonho que o filme trabalha no seu âmago, e relaciona-se, mais uma vez, com os dois grandes acontecimentos do filme: a paixão que as três raparigas desenvolvem pelo Capitão John e a morte de Bogey. Podemos dizer, ao atentar nas primeiras cenas do filme, que Harriet e as amigas levam as suas existências numa espécie de idade da inocência, cuja tranquiliadade a chegada de Cap. John vem perturbar, ao introduzir a realidade do amor no mundo fantasiado de Harriet, a morte de Bogey funcionando, depois, como a derradeira sobreposição da realidade ao sonho - interrompendo-o literalmente, se tivermos em conta como a descoberta da morte de Bogey se dá: vemos, a começar por Harriet, no jardim, uma sequência em que os elementos da família fazem a sesta nas diversas divisões da casa, excepto Bogey, que vai brincar com o amigo Kanu para a Árvore do Povo, junto da qual avistara uma cobra; voltamos a Harriet, que, ao despertar, dá pela ausência de Bogey e o vai encontrar, já morto, junto à árvore, havendo neste deste despertar um valor simbólico tal que não seria deslocado dizermos que é este o momento em que a trajectória pessoal de Harriet ao longo da história a conduz finalmente ao alcance da maturidade. Antes de falarmos do crescimento, do alcançar da maturidade, questões muito centrais no filme, convém contudo atentar num outro elemento que testemunha a importância da materialidade da paisagem em "The River": o muro. O muro, que separa a casa de Harriet da casa do vizinho Mr. John, relaciona-se com a tensão entre realidade e sonho uma vez que Renoir decide colocar as suas protagonistas atrás dele em dois momentos-chave, que decorrem além-muro - a chegada de Cap. John e a procissão fúnebre da morte de Bogey, respectivamente -, estabelecendo-o, assim, como uma barreira física entre o mundo familiar - o mundo do sonho, enfim, associado a Nan ("the bridge to life"), aos serões passados na companhia da música e às brincadeiras no jardim - e o mundo real, associado ao Cap. John e à morte de Bogey, havendo no pormenor de elas assistirem a estes dois momentos resguardadas pelo muro a manifestação da dimensão circular da construção narrativa do filme ("clay goes back to clay", diz-nos Harriet sobre Kali e os rituais de celebração dessa deusa da criação e da destruição que inspirou aos indianos a crença de que uma coisa não pode ter lugar sem a outra) mas, também, a sugestão do ciclo destinado a repetir-se que é, no fundo, a existência de cada um de nós: o rio traz Cap. John até elas, e é ao rio que Harriet regressa no esforço vão de reencontrar Bogey depois da sua morte, com a sensação de que tanta coisa ficou por lhe contar; mesmo a narrativa que Harriet relata a propósito da cerimónia tradicional do casamento indiano arranca de Valerie a observação de que aquilo não tem fim, estando tudo fadado a repetir-se com o nascimento da rapariga, momento de suspensão da intriga do filme propriamente dita que, contudo, prenuncia o seu final, com o nascimento da irmã de Harriet.
Assim sendo, há em "The River" a noção de que o crescimento de Harriet e das amigas se dá através do contacto com as realidades do amor e da morte, e de que o nascimento está sempre intimamente relacionado com a morte (não havendo propriamente uma relação causal entre os dois eventos, o facto é que à morte de Bogey sucede o nascimento da irmã). Dissemos antes que o tema do crescimento é algo de extrema relevância na compreensão do filme, e bastaria evocarmos as palavras que, em off, surgem no seu início para dissiparmos quaisquer dúvidas: "it is the story of my first love, and about growing up in the banks of the river". Desde aqui que o filme faz coincidir o crescimento das suas protagonistas com a descoberta do amor, ideia muito Jane Austeniana que ganha força nas palavras da mãe de Harriet no momento em que ela discorre sobre a experiência da maternidade, inserindo-a nesse ciclo interminável de começos e fins ao dizer à filha que ter filhos do homem que se ama "it's a precious, sanctified work", sendo o acontecimento que confere sentido à vida de uma mulher - o acto de amor figurando-se como sagrado, para ela, porque indissociável do acto de criação, de nascimento, de vida que se inicia. Tal como o amor, diz-lhe ela, esta é uma experiência que é dolorosa precisamente porque é suposto fazer pensar e sentir aquelas que a protagonizam. São, no fundo, as growing pains de Harriet, e há diversos momentos do filme que testemunham esse crescimento que está ainda em vias de se dar, momentos de uma tremenda manifestação da humanidade da personagem e que a separam de Valerie e de Cap. John, que muitas vezes a encaram com alguma condescendência: lembremo-nos, por exemplo, da cena em que Harriet anuncia saber tudo sobre Krishna, na tentativa de impressionar Cap. John, mas vendo-se forçada a perguntar-lhe, e a Valerie, como se soletra o nome desse deus; ou a cena em que Harriet se propõe a mostrar a Cap. John o seu livro de poesia - a poesia, que surge enquanto sinal da maturidade de Harriet e meio através do qual ela busca captar a atenção e interesse do Cap. John - explicando-lhe que "é um segredo" do qual estão a par, contudo, Nan, a mãe e outros elementos da família, como ela logo lhe revela.
Há, porém, uma cena do filme que materializa quase literalmente, através do staging da acção, estas ideias que relacionam o crescimento das protagonistas com o amor, o mundo de casa de Harriet, o jardim em que se trocam todas as confidências, e a realidade lá fora - temos em mente a cena em que Cap. John segue Melanie até à floresta, sendo ele seguido, por sua vez, por Harriet e Valerie, que correm atrás dele com flores nas mãos para lhe oferecer. Ora, para irem atrás dele, quer Harriet, quer Valerie têm ultrapassar o muro da casa (e isto é deixado bem claro pelo plano que nos mostra Valerie saltando-o e correndo, atrás de Harriet, em direcção à floresta), e a voz off de Harriet surge nesse momento para nos dizer que "suddenly we were running away from childhood, rushing toward love", sublinhando o carácter simbólico não só desse gesto particular mas de que se revelará carregada a própria cena, tal como as da chegada de Cap. John e do funeral de Bogey, que referimos anteriormente. O modo como a cena progride não é difícil de resumir: as quatro personagens chegam à floresta e acabam por dispersar-se entre as árvores; Valerie surge junto ao Cap. John e interpela-o, os dois acabando por se beijar sob o olhar de Melanie e Harriet. A esse beijo segue-se o monólogo de Valerie que serviu como introdução a este texto, havendo no travelling que encerra a cena e que nos afasta de Valerie e de Cap. John a sensação, que parte do interior das personagens e que nos vem envolver, de que algo se perdeu irrevogavelmente nesse momento. Poderíamos ousar mesmo dizer que o staging da acção nesta cena ilustra o fascínio de Renoir pela Índia (um ano lá tornara-o diferente, como o próprio confessou: "A Índia deu-me uma certa compreensão da vida, (...) ensinou-me talvez a ser um pouco mais paciente na vida, a compreender talvez que cada um tem as suas razões"), ao termos Cap. John, o forasteiro, a lançar a cena ao ir atrás de Melanie, a bela indiana, cativado pelo seu mistério e pela ambiguidade que caracterizara o momento anterior entre eles, dentro da casa. E este fascínio pela Índia vivido por Renoir, esta ânsia de a revelar um pouco aos que nunca a visitaram (não obstante ele ter admitido que para um francês a Índia é um lugar muito fácil de compreender), justifica talvez a natureza fortemente documental do filme - que se manifesta sobretudo nos momentos dedicados a elucidar-nos sobre a natureza da cerimónia de Diwali, a vida dos pescadores, o modus operandi dos trabalhadores da fábrica de juta que o pai de Harriet possui, as celebrações a propósito de Kali, ou a sequência em que nos é dado a ver uma série de escadarias que vão dar directamente ao rio - e com a qual a voz-off (presente desde os momentos iniciais, e sem a qual o filme nos parece inconcebível) se relaciona intimamente, pormenor que a resgata da mera função de comentário ou de exteriorização dos sentimentos e pensamentos de Harriet, que a poderia tornar irrelevante ou, pelo menos, redundante (algo que, felizmente, nunca acontece), voz-off essa cuja presença se torna ainda mais significativa se tivermos em conta que se tratou de uma decisão de montagem.
O rio, a árvore, o muro. O ciclo, a circularidade - o consentimento: é essa a postura a que o filme no final aspira a fazer o encómio, atitude que surge enraizada nas tradições indianas em que a história vem imbuída e que, também ela presente em Ozu, por exemplo, parece conter a chave para a continuidade desse ciclo que, no filme, reúne a aceitação da morte de Bogey, o ferimento que para sempre isolou Cap. John das pessoas com quem se relaciona, o amor que ele nunca dedicará a Harriet, e Melanie e o mistério das suas origens: a maturidade surge assim, para eles, não como uma ultrapassagem desses conflitos interiores, mas como a aceitação desses dilemas e paradoxos com os quais as vicissitudes das nossas existências nos fazem conviver.
Rúben Gonçalves